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A acelerar cada vez em maior número: moda dos estafetas veio para ficar

Os confinamentos enraizaram um conceito que se implementava aos poucos e que parece estar aí para ficar. É cada vez mais comum motas serpentearem estrada fora com a refeição até à porta de casa.

02 maio 2022 > 10:15

Meio-dia; aproxima-se a hora de almoço. Nas traseiras do Guimarães Shopping começa a escutar-se o ruído das motorizadas, vindo de várias direções. Alguns saem apressados com telemóvel em riste e mochila quadrada às costas; outros posicionam a mota de forma mais ordenada e tiram a mochila calmamente. São essencialmente homens – vê-se uma mulher ou outra -, e muitos são estrangeiros. Estão ligados à aplicação à espera de outra corrida numa realidade que a pandemia acelerou.

É a acelerar - pelo menos têm essa reputação - que os estafetas fazem o seu dia a dia. À boleia de plataformas como a Glovo e a Uber Eats, as mais conhecidas, esse trabalho foi exponenciado com os confinamentos. “A qualquer momento, é possível fazer um pedido e a comida chega a casa em 15 minutos, sem falar com ninguém e de forma prática”, explica André Torres ao Jornal de Guimarães. A vida é feita ao segundo: “Se for rápido podemos falar. Estou a meio de um serviço, mas demora oito minutos a estar pronto no restaurante”.

Vimaranense de 41 anos, André Torres é estafeta da Uber Eats há três. O gosto por motas, aliado à oportunidade, levou-o às entregas. “Os estafetas trabalham por conta própria. É precisa toda a documentação adequada: identificação, carta de condução, obviamente, e registo criminal. Temos também de abrir atividade nas Finanças para poder depois passar recibo”, explica.

Tratadas as burocracias, sempre através da aplicação, é hora de ir para um terreno competitivo, em que a oferta é significativa e a renumeração depende de múltiplos fatores. “Na pandemia, nos confinamentos, era melhor, fazia-se mais dinheiro. Agora há muitos estafetas para menos pedidos”, desabafa Robson no mesmo local, enquanto espera pela sua vez. Natural de Goiás, está em Guimarães há uma dúzia de anos e é estafeta há quase ano e meio.

 

“Pedidos atrás de pedidos” na pandemia implementaram a moda

Pelo sotaque, percebe-se que há outro compatriota no encalce. Leandro Cândido é também brasileiro, mas de Fortaleza. Está na profissão há tanto tempo quanto Robson. Começou com as entregas por influência de um amigo, primeiro como part-time. Mas com o tempo foi trabalhando mais horas até fazer deste o seu modo de vida. Estafeta da Glovo, Leandro Cândido crê que a pandemia foi um grande impulso para este tipo de plataformas.

“Eu diria que a pandemia aumentou isto; 80 por cento, talvez. As pessoas estavam em casa e eram pedidos atrás de pedidos, acabando por ser feita uma divulgação deste tipo de serviços. As pessoas começaram a acostumar-se à entrega, e isso ficou mesmo depois da pandemia”, atira Leandro entre a correria. Acaba de cair um pedido. “São apenas cinco quilómetros. Se quiser esperar quinze minutos, na volta falamos”, prevê.

Não erra por muito o tempo da entrega. Em cerca de 15 minutos está de volta às traseiras do Guimarães Shopping, uma espécie de “quartel-general”. Não tem de estar ali, mas o fluxo é mais intenso e o processo simplifica-se. Mas o regresso de Leandro Cândido faz-se em passo novamente apressado. Vem com outro serviço em mãos e pede desculpa.

É hora de ponta para os estafetas, que não só de entregas de comida fazem o seu dia a dia. Robson está inscrito nas duas aplicações; a Uber Eats, tal como o nome indica, dedica-se à entrega de comida, enquanto a Glovo é mais abrangente. “Levo o que for preciso, o que for indicado na aplicação. Supermercados, farmácias, fazemos várias entregas. Até ir buscar uma chave ou outra coisa vamos”, refere.

 

“Menos de 350 euros por semana não compensa”

Apesar das pequenas diferenças, há um ponto em que os testemunhos se tocam. Para a vida como estafeta ser rentável, é necessário trabalhar seis dias por semana, a uma média diária de dez horas. “O que se ganha varia de entrega para entrega”, diz Leandro Cândido. “Recebemos por entrega. Temos um valor fixo por entrega, por recolher no restaurante e entregar no cliente. Depois, mais por quilómetro”, completa André Torres.

“A média que eu ganho é de 300 a 400 euros por semana. 350 euros será, digamos, a média. Abaixo disso não vale a pena, porque pagamos os nossos impostos, temos gastos de combustível, manutenção da mota”, acrescenta, por sua vez, o brasileiro de 38 anos. “Existem períodos mais fortes, até às 15h00 no movimento do almoço. O movimento do jantar, entre as 19 e as 22h00, varia com a estação do ano, e até com o tempo que está”.

A incerteza é, portanto, muita. Os estafetas estão sujeitos a variáveis que não podem controlar. Ao fim de semana, o volume de trabalho aumenta notoriamente, assim como em dias de chuva, quando é mais cómodo receber o almoço ou o jantar em casa. Mas desengane-se quem pensar que se trata apenas de um emprego apenas para os honorários das refeições.

“É mais do que isso, do que esses dois horários de trabalho. Neste momento, o horário de trabalho é compreendido entre as 21h00 e as 04h00. Podemos trabalhar quando assim desejarmos dentro deste horário. Na Glovo, têm estipulado dez horas de trabalho por dia. As entregas dependem do volume de trabalho e as horas de trabalho são relativas”, transmite André Torres.

 

Restaurantes adaptaram-se, pena a “precariedade” laboral

A moda pegou, é certo. Os restaurantes aderentes já se adaptaram a esta realidade. “Muitos já nos facilitam a vida. Têm uma base para colocarmos a mochila”, reconhece Robson, em mais um indicador de que, de facto, a tendência veio para ficar. Ainda assim, apesar deste sentimento, a diminuição de entregas que paulatinamente se vai fazendo sentir começa a preocupar. “Estamos a passar uma fase um pouco mais crítica. Os pedidos diminuíram, as pessoas já andam na rua e fazem as refeições fora, notando-se que há menos pedidos”, esclarece André Torres.

Com a redução de pedidos a pairar sobre as motas que serpenteiam, solta-se dos três estafetas uma palavra comum a todos: “Precariedade”. Os recibos verdes são a realidade desta profissão e, ao fim de contas, o seu principal calcanhar d’Aquiles. Leandro Cândido faz a entrega final, resumindo com simplicidade os traços da profissão: “Pessoalmente gosto deste trabalho, mas não é algo que queira para o futuro. Tem pontos positivos: fazes o teu horário e é ao ar livre. Mas também tem pontos negativos: não tens contrato, não consegues um crédito, pagas os impostos por fora, não és vinculado e por isso não há subsídio de férias nem de Natal”. Entrega feita. Mão no punho a acelerar novamente.

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