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“A Grande Serpente marcou o início de uma Guimarães cultural”

Em processo de recriação da obra de 1994, o dramaturgo questiona os efeitos práticos da Capital Europeia da Cultura 2012 e exorta à inquietação, essencialmente dos jovens.

17 maio 2022 > 10:40

Moncho Rodríguez – nome artístico de Ramon Rodríguez Guisande – está de volta a Guimarães para recriar “A Grande Serpente”. O dramaturgo faz-se acompanhar das memórias de um momento marcante da produção cultural vimaranense e do país, agarrando o presente e pensando o futuro. 

 

Há dez anos deu uma entrevista, na RTP 2, em que cita o seu pai e diz textualmente isto: “O galego e o português são aqueles que estão no meio da uma escada e tu não sabes se sobem ou descem”...

Adapto-me, consigo transformar, sendo para cima ou sendo para baixo; a missão é para cumprir da mesma forma. Sou um pouco como os cães, dou muitas voltas antes de me ir deitar. É engraçado falar do meu pai. Sempre fui um homem muito ligado ao meu tempo, mas ao meu tempo de memória, do meu imaginário, que é o tempo dos meus antepassados, do meu pai, do meu avô, do meu bisavô. O tempo do tempo que ainda não conheci.

 

Ou seja, o seu tempo são muitos tempos…

Muitas vidas. E vidas intensas. Tenho a sensação de que não saí nem com fome nem com sede de nenhuma dessas vidas. E cheio de amores, de prazeres e de criações.

 

Como veio para Guimarães?

Foi um momento muito bonito. Tinha descoberto Guimarães antes de vir morar em Guimarães. Fugia da Galiza para Guimarães, porque isto me atraía muito, não sei porquê. Talvez pelas pedras. Pelas ruas tortas, a Praça de São Tiago parecia que ia desabar porque não tinha calçada. O Centro Histórico de Guimarães é uma invenção da modernidade. Tudo que é antigo é uma versão do moderno, porque o antigo nem sabia que era antigo. O centro histórico estava em lama, o terreno acentuava o desequilíbrio das casas. Não deixava de ser uma paisagem romântica, linda e maravilhosa. Isso atraía-me muito em Guimarães. Quando estava no Brasil, com companhias e espetáculos experimentais, vim a Portugal e tinha no meu roteiro Guimarães. Fosse contratado ou não, eu dava sempre um jeito de trazer o espetáculo a Guimarães, porque gostava de experimentar, no meio daquelas pedras, junto com aquela gente, as imagens e os espetáculos que produzia.

Encontro Guimarães em 1994. Foi muito engraçado, o momento em que a cidade se preocupava em recuperar as pedras. Recuperar as pedras não significa recuperar a história, mas sim recuperar pedras, o centro histórico. De repente apareceu um jovem político, um jovem vereador, que teve a audácia e a ousadia de dizer, de alguma forma, vamos também abrir caminhos para gente nova, para coisas que vão ser necessárias que habitem dentro destas pedras que vão ser recuperadas. De que nos vale ter um centro histórico maravilhoso, se nele não há vida, se nele não há gente? Gente que pulse, gente nova, gente inquieta. Foi o Francisco Teixeira. Esse jovem, enquanto todos os investimentos eram feitos nas pedras, investiu nas gentes. Foi bonito. Desafiou-me a vir para Guimarães fazer um projeto para os jovens, para todas as pessoas.

 

É sua preocupação fazer um teatro que provoque? Que convide à participação?

Uma vidente brasileira uma vez disse-me que as pessoas ficavam muito assustadas nos meus espetáculos, porque reconheciam-se dentro das personagens. Mas não se reconheciam na personagem, mas dentro das personagens. Achei isso engraçado, dar ao espetador uma parte da criação para que ele a pudesse habitar. Desenvolver essa inquietação dentro dele. Quando não provoco muito os espetadores, procuro pelo menos multiplicar essa ideia dentro do ator. Os atores que trabalham comigo são pessoas muito bonitas que acabamos sempre por ter uma cumplicidade para a vida. Há gente que trabalha comigo há mais de vinte anos, e sentem-se muito felizes cada vez que trabalhamos juntos. Temos uma missão: a missão de poder contribuir na transformação do momento.

 

E aí chegamos à “A Grande Serpente” em 1994, a Guimarães; teve algumas facetas épicas, com 300 candidatos para participar na peça. Como foi isso?

Que bonito, não é? Quanta sede havia por aqui. Havia uma multiplicação e, naquela época, algum deus do teatro deu ao dia mais de 24 horas. Não sei de onde saía tanta gente e tanta inquietação. Tanta coisa boa. Fiquei muito feliz com uma coisa: o ideal do jovem vereador [Francisco Teixeira] foi cumprido, naquele momento. Ele acertou em cheio, porque abriu as portas, não para um grupo de 10, ou 15, ou 20 pessoas, como seria o normal e o esperado, mas para mais de 300 pessoas, o que nos dá uma ideia da necessidade, da vontade, da coragem, do vamos fazer agora, vamos acontecer. Vamos aproveitar este embalo e formar a nossa cidade, recuperar a nossa cidade. Vamos doar-nos para a cidade. Este movimento continuou. Estive oito anos em Guimarães, foram anos de experiência e investimento nas pessoas da terra. Foi muito bonito, nada estava programado, nada estava previsto para que esses jovens seguissem carreiras, mas seguiram carreiras e são os jovens que hoje estão a influenciar no panorama cultural do país, que estão na cena atual. São jovens com voz, com coisas para dizer. Estão a transformar algumas coisas. E de onde saíram? Saíram de um movimento que se chamava ODIT [Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral]. Com todos os preconceitos que o país tinha contra o interior, tiveram de engolir, porque ele saiu de Guimarães, de uma cidade em recuperação. Que se reconstruía, queria mostrar-se ao mundo, mostrar a sua identidade.

Depois são outras histórias, opções políticas que se tomaram nos governos das cidades, os políticos parecem que sabem o destino a dar aos seus lugares, às suas gentes, e podem fazer um centro histórico com pessoas ou um centro histórico apenas para fotografias, porque os turistas nem sequer pisam no centro histórico, são as máquinas fotográficas que fotografam ao longe. Há uma modernidade diferente hoje em dia, as pessoas não querem estar nos lugares que visitam, estão nos Facebook.

 

Moncho continua a defender os lugares para as pessoas, ainda recentemente na apresentação da nova “A grande serpente” disse “mais do que património, as infraestruturas têm que ser as pessoas”…

Sempre. É um erro pensar que vamos transformar as cidades em cartões-postais. O grande postal que podemos dar é a capacidade humana, a sua identidade, a sua memória, a sua diferença. A sua raiz. O mundo tem que estar feito de misturas; a modernidade não pode existir sem o ancestral. Não há contemporâneo sem a memória, sem a tradição. A tradição não pode continuar a significar atraso. Popular não quer dizer pobreza, antes pelo contrário, é no popular onde encontro o erudito. E é no erudito onde vou encontrar a modernidade. A expressão que se transforma. Por isso é que acho que o investimento é muito importante em equipamentos, em tecnologia, em oferecer às pessoas o melhor que podem ter para estarem na vanguarda. Mas, para oferecer às pessoas. É preciso também investir nas pessoas, na sua formação, nas suas necessidades. Investir na sua liberdade, criatividade e expressão. Um povo que não se expressa é um povo que não existe, um povo morto. O povo tem que criar, o jovem tem que ter o seu espaço para explodir, para viver, para errar. Como é bom errar! Se não errarmos não vamos para a frente. Vimos de uma tradição de povo pobre e o pobre só vai para a frente quando tropeça. Quando erramos acertamos em caminhos de encantamento. Não podemos continuar no nada, na imobilidade, na aceitação do tudo pelo tudo. Estão a comprar-nos com hambúrgueres. Cuidado! Nós somos aquilo que comemos. Se nos queixamos que os jovens não leem, que não há movimentos culturais, que as pessoas estão desinteressadas, cuidado aos cozinheiros, quem alimentou esta geração. Acredito muito na inquietação dos jovens.

 

"Foi muito bonito, nada estava programado, nada estava previsto para que esses jovens seguissem carreiras, mas seguiram carreiras e são os jovens que hoje estão a influenciar no panorama cultural do país, que estão na cena atual. São jovens com voz, com coisas para dizer"

 

Inquietação é uma palavra que repete muitas vezes. Cada um de nós deveria estar em permanente estado de inquietação?

Sim. E repetir uma frase dos Rolling Stones: não estou satisfeito. Esta insatisfação vai mover-nos, é por esta insatisfação que se recupera, nesta nova “A Grande Serpente”. Não se vai repetir 1994, estamos a criar 2022. As pessoas não sejam saudosistas. Eu só tenho saudade de futuro. Não vou sentir saudade do passado, tenho é saudade daquilo que ainda não vivi. E é por isso que quero viver mais. Não é “A Grande Serpente” de 1994 que vamos repetir no mesmo espaço, que está mais composto, em Couros. Para mim continuará a ser a Fábrica de Couros. É um espetáculo de desafio de linguagem, de estética, de movimento de 2022. Para repensar, para provocar este momento em que estamos. Porque é neste momento que estamos a viver que queremos construir o que vamos viver amanhã. A inquietação de depois de amanhã. A insatisfação do agora é que nos vai fazer caminhar.

 

Regressar à “Grande Serpente” em 2022 é uma inquietação? Na apresentação disse que “a retoma da encenação pode ser um desafio bem maior do que na primeira vez”. Porquê um desafio maior?

O imaginário e a memória das pessoas. Nós temos a mania de querer amar de novo e esquecemos que amar é novo. Não é de novo. Não é amar o que já se amou. É amar para a frente. O grande desafio é que muitos dos espetadores vão em busca de uma fotografia que ficou gravada na sua memória há 28 anos. É um desafio trabalhar com o imaginário coletivo, quando ele de uma forma bonita e saudosa se apega a um momento que foi importante para a sua vida, para aquele momento social. Conheço jovens que me dizem que nasceram quando “A Grande Serpente” estava a ser construída, que viviam atrás da Fábrica de Couros e ouviam os ensaios. Esse espetáculo marcou o início de uma Guimarães cultural, do nascimento da cultura em Guimarães, que se faz sentir hoje, que deu o estatuto de Capital Europeia da Cultura (CEC). Independentemente se esse momento foi bem ou mal aproveitado, não interessa, o que interessa é que chegámos aqui. Agora temos a proposta de romper o imobilismo, vamos acordar um pouco mais para que exista produção local, para que as pessoas sejam participantes de um novo movimento.

 

Também dizia que “a produção cultural, mais do que a vontade de um encenador, de um escritor ou de um ator, depende da comunidade e da dimensão social em torno da criação”. É isso que está aqui em causa?

Sim. É tão bonito abrir as inscrições e ter um grupo que todos os dias está a crescer, de gente que quer participar nesta nova aventura. Vamos incluindo as pessoas que chegam, num progresso permanente, junto com espetadores convidados que todos os dias vão assistir a ensaios. Alguns desses espetadores deixam de o ser e passam a ser atores. Mesmo que sejam atores por um dia, essa experiência de contacto com a arte é fundamental. Há uma mania de dizer que o teatro serve para salvar todos os males. Não. Esqueçam isso. O teatro é apenas um movimento artístico à procura de um novo tempo. De um novo ser, de um novo homem. Que pode contribuir para que a sociedade comece a explodir, a inquietar-se mais, a ser mais ativa, que borbulhe, que fervilhe. Tirem as pantufas, é o que há vontade de dizer. Já passámos o tempo dos centros comerciais, que eram passeios maravilhosos, onde todos, mesmo aqueles que não queriam comprar nada, se passeavam pelas vitrinas. Já passámos por muitas coisas nesta vida de modernidade que nos deram. Ofereceram-nos tudo. Mentira. Estão a comprar-nos com tudo, com todos esses bens de consumo. Estamos a deixar de ser aqueles tipos alegres que iam para o meio do monte dançar e brincar, amar, namorar, divertir-nos. A poder chegar a casa felizes com uma borracheira de vida dentro do corpo.

E vamos construir coisas novas. E vamos viajar. E vamos ser, os seres que devemos ser, nesta viagem, nesta vida, neste mundo. Que é nosso! Tomar rédeas na nossa cidade, na nossa aldeia. Eu estou a construir ainda a minha aldeia, mas não de forma passiva, mas sim como um agitador, às vezes a fingir que acredito no que não engulo. Nunca vou ser politicamente correto, assim como nunca serei um senhor, porque não tive tempo de chegar lá.

 

Não está previsto ser um senhor nesse processo de construção que ainda procura?

Não.

 

Por falta de jeito?

Vamos aceitar isso, Não tive nem tempo nem jeito para ser. Serei sempre o rapaz entusiasta forte a reviver e renascer todos os dias. No dia que não renascer não precisam de se preocupar, é porque já não estou.

 

"Se nos queixamos que os jovens não leem, que não há movimentos culturais, que as pessoas estão desinteressadas, cuidado com os cozinheiros, quem alimentou esta geração. Acredito muito na inquietação dos jovens"

 

 

Guimarães tem sempre como imagem o centro histórico. Passando por Guimarães a cada esquina o passado convoca-nos. Alguma vez encarou o desafio do dramaturgo escrever ou criar alguma coisa a propósito de Guimarães?

Bonito. Foi feito o desafio agora. Não digam coisas, porque me inquietam e fico a pensar. É claro que Guimarães é um grande desafio, por tudo. Porque é um cenário tão bonito. Conseguir colocar poética humana nesse cenário é uma coisa fantástica. Vou pensar seriamente no seu desafio, antes que os centros históricos se transformem apenas em manjedouras para beber, comer e mais nada. É preciso que haja mais vida nos centros histórico, que não se percam os habitantes do centro histórico, que não se expulsem das suas casas. É necessário um pacto de harmonia entre todos, para que cada lugar da cidade seja um lugar maravilhoso para se viver e para poder criar e conjugar tudo, não privilegiando apenas o económico em detrimento do humano. É preciso vida, mas não apenas de comércio. As pessoas começam a querer ir viver longe dos centros históricos, porque não conseguem mais viver com o botelhão, como dizem os espanhóis. É muito agradável uma vez ao ano, como certas feiras medievais – às vezes somos tão medievais, há tantas feiras que já nos cansámos delas – já provámos disso, não façam mais. Vamos renovar-nos, de alguma forma. Para viver é preciso criar desafios todos os dias e enfrentar esses desafios. Viver na repetição vai matar-nos.

 

Do que é que não falámos e devíamos ter falado?

Ainda bem que ficam sempre coisas por dizer. Isso significa que continuaremos a conversar, continuaremos a encontrar-nos. Temos vontade de falar mais. Há tantas coisas nesta vida de criação que podíamos falar. Mas, ainda bem que falámos de um momento que é tão importante, para mim, para as pessoas envolvidas neste processo da nova serpente, chamemos-lhe assim, e importante para a cidade que neste momento anda à procura do que fazer depois de ter descoberto o caminho marítimo da CEC.

 

Foi um caminho marítimo?

Eu acho que foi uma grande trajetória. Foi fantástico chegar lá. Não sei se correspondeu ao que devia ter sido, não sei se realmente correspondeu para as pessoas da terra. Não sei o que, de alguma forma, contribuiu para inquietar as pessoas de Guimarães. Quando digo pessoas não me refiro a grupos de teatro, artistas plásticos, poetas ou escritores. Não. Pessoas, para mim, é gente como eu, que vivem isoladas em cantos à procura de fazer as coisas mais comuns, mais simples da vida, que nem todos os dias lhe apetece entrar num teatro ou num cinema, porque nem todos os dias tem dinheiro para poder ir a um teatro ou a um cinema. Ou porque nem todos os dias foi motivada para participar num movimento cultural. Gostaria muito de dizer o que fizemos por este público, por esta gente. Será que realmente conseguimos tocar-lhes? Será que realmente mudámos, abrimos portas para que eles mudassem alguma coisa? Temos mais espetadores de teatro? Temos mais espetadores de dança? Temos mais envolvimento da comunidade nos processos criativos? Existem produções locais? Essas produções ganham os palcos fora dos seus limites? Essas produções e esses artistas estão a conseguir viver? Não é sobreviver, porque sobreviver sobrevivemos todos. Viver felizes com aquilo que produzem, com o que criam, com o seu trabalho? Há proteção para os criadores? Será que a Capital da Cultura realmente mexeu com a população? Não estou a duvidar de nada, só faço um apelo para que todos pensem em reflitam sobre isso. Senão temos de reinventar a Capital da Cultura todos os dias, porque a Capital da Cultura não pode continuar a ser um privilégio de fim de semana. Cultura é para ser utilizada todos os dias por toda a gente.

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