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Agente transformador, Orçamento Participativo paira numa encruzilhada

Veículo para o crescente elo entre escola e cidadania, o Orçamento Participativo também já deixou marca no universo adulto. Ainda assim, os anos de espera deixam sequelas e "alterações" precisam-se.

26 junho 2022 > 00:02

As mimosas dissipam-se e as pedras, cada vez mais salientes na sua arrumação, dão asas à imaginação: Francisco Martins Sarmento escavou, em 1877 e 1878, e Christopher Hawkes datou, em 1958, aquele reduto de 35 casas circulares e três retangulares, envolto por duas muralhas, uma delas invulgarmente robusta para um povoado castrejo – 5,20 metros de altura e 4,20 de espessura. O Castro de Sabroso está a ser requalificado para se tornar visitável e encerrar assim um capítulo de quase meio século perante a ameaça das espécies invasoras e da falta de limpeza.

A operação está em curso deve-o, em parte, ao Orçamento Participativo (OP) da Câmara Municipal de Guimarães. “Metia-me muita pena ver o castro assim. Há mais de 50 anos que o conheço, da minha juventude. O próprio acesso tinha a sinalética de Monumento Nacional, mas a gente subia e era inacessível. Ao ficar limpo, com a sua autenticidade, dará a conhecer a civilização celta que lá viveu”, assinala Carlos Marques, autor da segunda proposta mais votada na edição de 2017.

O seu contributo, prossegue, foi o de colocar em “discussão pública” um projeto até então “confinado às paredes da Sociedade Martins Sarmento”, entidade que tutela aquele sítio arqueológico em São Lourenço de Sande: configurou a proposta para caber no teto de 50 mil euros, submeteu-a à votação e andou “no terreno”, a “arranjar eleitores”. O esforço em torno daquele núcleo pelo menos habitado entre os séculos III a.C. e I a.C. reuniu 572 votos, o segundo maior número entre 15 propostas, acima da fasquia mínima de 500 para ser eleita.

Assegurada a intervenção, Sabroso pode replicar a Citânia de Briteiros como “ponto de interesse turístico, histórico e educacional”, beneficiando a atração da área envolvente à vila de Caldas das Taipas, onde reside, e do concelho de Guimarães como um todo, perspetiva.

Foram, contudo, precisos mais de quatro anos para o projeto sair do papel para o terreno. E a verba alocada para as escavações arqueológicas, conservação das estruturas e posterior musealização mais do que quadruplica o financiamento do OP: proprietária do castro, a Câmara entregou o projeto à Era Arqueologia por 218.500 euros. “Sabroso é um exemplo de algo que começou no OP e depois avançou para financiamento do PRODER [Programa de Desenvolvimento Rural]”, confirma a vice-presidente da Câmara, Adelina Paula Pinto.

 

 

Participar é uma curva de “altos e baixos”

A cargo do pelouro da Educação desde 2013, a vereadora é também a responsável pelo Orçamento Participativo, mecanismo em vias de retoma após a interrupção que adveio da pandemia; a votação relativa à sétima edição do OP começara em abril de 2020 e foi suspensa em maio, sendo retomada “no ponto em que se encontrava”. “Perguntámos a cada um dos proponentes se os projetos continuavam a fazer sentido dois anos depois. Responderam que sim. Eles estão exatamente nos mesmos moldes, com o mesmo regulamento aprovado em 2019”, esclarece.

As propostas à escolha dos cidadãos são oito; há as culturais – roteiro turístico de Caldas das Taipas, valorização da Semana Santa de S. Martinho de Sande, partilha de tradições de Guimarães com escolas da comunidade portuguesa de Nova Iorque, mural a assinalar nascimento de bebés ou dinamização do convívio intergeracional em Nespereira - e as ambientais – dois projetos de reciclagem em Ronfe e um de valorização dos espaços verdes de Santa Eufémia de Prazins.

A lista ao dispor dos vimaranenses é a mais curta desde que o OP surgiu, em 2013, alongando a quebra abrupta de participação entre 2014 e 2015; se o primeiro ano teve 80 propostas sujeitas a votação e o segundo 72, o terceiro já só teve 15, patamar em torno do qual gravitaram as edições seguintes. A Câmara Municipal reconhece “algum apagamento na capacidade resposta da população” ao OP, sendo precisos “novos inputs” para a “curva de participação voltar a subir”.

“Tem havido momentos mais altos e mais baixos”, realça Adelina Paula Pinto. “No início, houve muita envolvência. Depois foi diminuindo. As pessoas vão desistindo quando acham que o processo é mais complicado ou não conseguem o número de votos suficientes. Precisamos de ver que alterações são precisas”.

A vereadora reconhece, por exemplo, que os “processos de análise” das propostas vencedoras devem ser “mais rápidos e eficazes” para que os cidadãos continuem a ver no OP uma solução para a “intervenção informada, ativa e responsável nos processos de governação local”, segundo as cinco etapas descritas na Carta de Princípios da Câmara Municipal: avaliação do ano anterior e definição da verba a afetar ao OP, divulgação pública, análise técnica pelos serviços municipais, votação e apresentação dos resultados.

Ainda assim, este percurso tem semelhanças ao de municípios parceiros de Guimarães na Rede Participativa, como Valongo, Cascais e Torres Vedras, dotados de “práticas de participação muito cimentadas”. Em 2019, Portugal era o segundo país da Europa com mais Orçamentos Participativos (1.700), atrás da Polónia. Palmela foi o primeiro município luso a implementar a medida, de modo consultivo, em 2002.

 

 

A espera para se criar ambiente nos vazios

A intervenção no Castro de Sabroso está longe de ser o único projeto a esperar mais de um ano para ver a luz do dia. Eleita em 2015, com 576 votos, a Ecovia de São Torcato cinge-se ainda a um documento que prevê a valorização dos caminhos entre as áreas de Mogege e da Corredoura, junto ao rio Selho, com percursos pedonais e cicláveis e ainda zonas de descanso e de piquenique, que aproximem os utilizadores da biodiversidade e do património cultural em redor.

“O projeto ainda não foi implementado devido à propriedade de terrenos”, esclarece Bruno Magalhães, autor da proposta orçamentada em 23 mil euros. “Os proprietários não se mostraram muito disponíveis para facilitar. Estamos a falar de terrenos que supostamente não são deles – aquelas faixas junto ao rio -, mas isso tem sido complicado resolver”. O projeto, no entanto, continua “em andamento”, devendo ser até associado à futura ecovia do Selho.

Eleito um ano antes, o projeto do parque de lazer de São Cristóvão de Selho, que prevê a implementação de um anfiteatro e de equipamentos acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida, segundo uma verba de 100 mil euros, continua bloqueado pelo litígio em tribunal entre a Câmara e o proprietário da fração do parque contígua ao acesso a Pevidém.

Apesar de 2019 ter servido para se colocarem “vários projetos atrasados em ordem”, Adelina Paula Pinto reconhece que os “atrasos na implementação” de propostas vencedoras desgastam quem as apresentam: “Percebemos que há uma desilusão nos proponentes, que fazem todo o trabalho para conseguirem os votos suficientes e depois vêm a execução demorar”.

Entre as causas para a espera, há as “internas”, em que a Câmara “não consegue dar resposta em tempo útil ao que está aprovado”, e as “externas”, relacionadas com “terrenos” e com entidades como a Agência Portuguesa do Ambiente e a Infraestruturas de Portugal. “O Batoca Park é um desses exemplos. Por causa da autoestrada, tivemos de ter autorização da IP”, especifica.

O BatocaPark é uma das seis propostas vencedoras de 2016, contemplando, sob o viaduto da A7, em São Martinho de Candoso, equipamentos desportivos e de lazer para “todas as idades”, quer “em dias de chuva ou em dias de muito calor”, lê-se no portal do OP. Seis anos depois, a retroescavadora apareceu em cena para alisar a terra batida, preparando-a para o trilho que se desenha à sombra do betão, ladeado por árvores recém-plantadas. “Temos aqui um parque coberto. Retiramos aquela imagem sombria que tem esta parte da freguesia e conseguimos renová-la para lhe dar outro ar”, diz Adelino Névoa, autor da proposta, então com 19 anos.

Fruto da “proximidade” com a presidente da Junta de Freguesia, Odete Lemos, o projeto nasceu numa “conversa informal” e transformou-se num “projeto estruturado com boas perspetivas de vencer o OP”; para tornar essas perspetivas realidade, fez um trabalho “porta a porta”, em casas e cafés, a pedir votos. “Mesmo a ideia sendo atrativa, as pessoas muitas vezes não conhecem o Orçamento Participativo”, explica o cidadão, agora com 25 anos.

O regozijo pela eleição do projeto deu lugar ao impasse em torno da execução, também acentuado pela construção da ecovia que ali passa, entre 2017 e 2018. “Em termos camarários, deu-se prioridade à ciclovia porque era um projeto concelhio. Todos os projetos subjacentes, localizados perto, foram adiados”, esclarece. Ainda assim, o BatocaPark pode beneficiar desse canal que liga o Reboto, em Candoso, à pista de cicloturismo, em Mesão Frio, atraindo não só pessoas da freguesia, como da cidade.

Ainda sem a certeza de que será possível instalar todos os equipamentos propostos – equipamentos de street workout, rinque de futebol e campo de voleibol -, Adelino Névoa crê que o futuro parque será complementar ao da Cidade Desportiva, em S. Tiago de Candoso, ao qual já está ligado por meio pedonal e ciclável, e ao de S. Cristóvão de Selho, ao qual está previsto ligar-se por uma futura ecovia; a cobertura faz a diferença, reitera.

“Há pessoas que, no inverno, não gostam de andar a pé e podem vir aqui. O rinque coberto pode ser uma mais-valia todo o ano. Tem um conforto que os outros não têm”, vinca. “E dá à freguesia o parque de lazer que não tinha”, conclui.

 

 

Da leitura à hidroginástica: ativar o envelhecimento

Os efeitos do Orçamento Participativo em S. Martinho de Candoso não se ficam, todavia, pela sustentabilidade ambiental. Em 2015, aquele território viu eleito o Candoso Ativo, projeto de dinamização física e cognitiva para a população acima dos 55 anos.

Gizada para um ano, com orçamento de 47 mil euros, a iniciativa ganhou tração e utentes para a informática, a hidroginástica ou as “visitas culturais”, sob a coordenação da psicóloga Carina Loureiro. E, ano após ano, tem merecido a aprovação por unanimidade da Assembleia Municipal. “Já tem perto de 100 pessoas. O projeto faz toda a diferença nesta comunidade, pequena e de pessoas com idade muito avançada. É ainda mais importante agora que estamos a sair da pandemia”, realça Odete Lemos.

Projetos eleitos na primeira edição, como o Raízes, destinado à “reabilitação de famílias vítimas de exclusão social”, em Moreira de Cónegos, e o Então Vamos, pensado para o envelhecimento ativo em S. Torcato, foram eleitos em 2013 e continuam bem vivos nove anos depois. E o projeto +Vida, em Nespereira, acompanha a tendência: vencedor em 2017, acelerou dos 30 para os 80 utentes em quatro anos, para um rol de atividades que engloba a expressão dramática, a leitura e a escrita, aulas de natação e hidroginástica ou oficinas de saúde, alimentação e informática.

No +Vida, os cidadãos mais velhos conjugam a oportunidade de se sentirem mais ativos e “alegres” com eventuais consultas de psicologia para “exporem alguma situação menos boa da vida delas”, esclarece Catarina Ferreira. “Como psicóloga, estou pronta para que as pessoas me procurem para as atividades, mas não só”, indica a coordenadora do projeto. A janela para “novas amizades” coexiste assim com os estímulos psicológicos e físicos das atividades, presentes até em utentes que já sofreram ataques vasculares cerebrais.

Os projetos de voluntariado e solidariedade, reconhece Adelina Paula Pinto, são, por norma, “mais fáceis de implementar” do que os ambientais, exigindo somente a contratação de técnicos para a realização das atividades. O assunto mais sensível não é, portanto, o início, mas o “fim do projeto”, tendo em conta a limitação de prazo. “Isto vai escalando. No ano seguinte, não temos coragem de o terminar. Há ali um grupo de seniores que se foi habituando ao projeto”, esclarece.

 

 

Enquanto se pensa nos “nem-nem”, as escolas semeiam a “cidadania”

Ao examinar o status quo do OP de Guimarães, a vice-presidente da Câmara sugere uma outra alteração para breve: a criação do OP Jovem, a pensar naqueles que “não estão na escola, nem no mercado do trabalho” – os “nem-nem”. Mas se a versão geral e a versão jovem suscitam dúvidas, o público de mais tenra idade emerge como bastião de “cidadania mais ativa”: o OP Escolas surgiu em 2015, recolhendo parte da verba anual destinada ao programa. Os 100 mil euros atribuídos no primeiro ano (20% do total) converteram-se em 200 mil (40%) a partir de 2016, distribuídos por propostas com um teto de 12.500 euros.

Como o município tem 14 agrupamentos de escolas e duas Secundárias sem agrupamento (Martins Sarmento e Taipas), cada entidade tem sempre um projeto premiado em cada ano, mediante votação dos seus alunos. “Funciona bastante bem. O projeto parou por força da pandemia, mas temos já solicitações das escolas para o recomeçar, pelo envolvimento que gerava nos alunos”, descreve a vereadora da Educação.

À exceção de escolas recém-intervencionadas – como a EB1 de Casais, em Brito – ou prestes a entrarem em obras – EB 2 e 3 de São Torcato -, os projetos têm sido executados por alunos que “trabalham a oralidade, a proatividade, a busca de soluções, a persuasão perante os colegas”, prossegue Adelina Paula Pinto. Do que já foi feito, há “projetos imateriais” como “ensinar os seniores a mandar um e-mail ou a fazer o IRS” ou salas de leitura e materiais como “parques infantis, campos de jogos, redutores para torneiras e lâmpadas ou hortas pedagógicas”.

As árvores de fruto e os legumes a brotar da terra são cenário ao alcance dos mais novos na EB1/Jardim de Infância de Santa Luzia, na Quintã. Entre o quartel dos Bombeiros Voluntários de Guimarães e as corpulentas urbanizações dos anos 70, molhos de alface, de couves e de cebolas germinam ladeados por árvores de fruto - macieiras, laranjeiras, pereiras, cerejeiras ou tomateiros -, por uma estufa com sistema de rega e “uma casinha de madeira onde se guardam os utensílios”: são peças de um cenário que esconde um solo não tão fértil assim, nomeadamente para os legumes. “As colegas plantavam e semeavam, mas ficavam muito desmotivadas, porque nada germinava como queríamos. O solo é muito duro. Cavávamos e logo à superfície havia rocha. Não dava nada.”, recorda a coordenadora da escola, Ana Leite.

A solução só se desenhou em plena pandemia, com a Câmara Municipal e a Resinorte a “limparem totalmente a horta e a fazerem uma remoção completa da terra”, antes de se aplicar um “composto” para “a tornar mais fértil”. Transformado, o solo que minguava as culturas ergue-as agora vivas e verdes, ocupando as 231 crianças daquele estabelecimento. Cada turma cuida do seu espaço consoante os horários estabelecidos pelos professores, emergindo outros usos que não tratar das frutas e dos legumes: o ar livre também serve para aulas de Estudo do Meio ou de Estudo Acompanhado. Uma turma do 4.º ano até fez uma armadilha para vespas asiáticas, ressalva Ana Leite.

Assegurado o cultivo, resta decidir o que fazer ao que a terra dá. É que “as quantidades não são tão grandes quanto isso”: à exceção das maçãs e das peras, nenhuma outra cultura tem dado para “repartir por todos”. Uma das hipóteses é utilizar as alfaces “nas saladas da cantina da escola”, reduzindo as despesas escolares nesse ingrediente, sugere a coordenadora.

Independentemente do volume, sobressai o quão “enriquecedor” é, para crianças habituadas a consumir sem se aperceberem da evolução das coisas, “plantarem, tirarem as ervas, regarem e verem dar o fruto”. “Achei piada quando, um dia destes, um miúdo do terceiro ano chegou a correr ao meu gabinete para dizer como estava a horta. Queria mostrar os tomatinhos verdes que já se viam. Achou muita piada. Até agora só viam aquilo no supermercado”, descreve.

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