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As uvas de Guimarães já chamam por quem as apanha

Os escadotes altos e pesados foram sendo substituídos e deram lugar a uma “luta” mais igual entre homem e vinha. A ligação entre estes dois elementos é secular e conta uma história.

19 setembro 2021 > 10:15

“Antigamente, éramos pequeninos e já íamos colher uvas para as árvores. Hoje já há poucas árvores. Agora é tudo em vinha”. João Pereira, 60 anos, começou “muito cedo” no ofício – nascido numa família de lavoura, ouviu rapidamente o chamar das uvas. A memória de João – lá pairam imagens de “escadas grandes” (grandes demais para o corpo pequeno e franzino), folias e périplos intermináveis que começavam cedo e tinham como destino quintas e propriedades – é rica e transborda conhecimento do que foi a vindima e vai deixando de ser. A transformação só deixa algumas saudades – ficaram “algumas mazelas” e João não romantiza tempos idos. Mas não é fácil criar o retábulo definitivo de uma tradição secular, marco da etnografia portuguesa, que condensa no período entre a colheita e o início da produção do vinho vivências e tradições que extravasam o simples processo de apanha da uva. Para o tentar fazer, seria boa ideia começar a viagem em São Torcato.

Por esta altura, sem o ensobramento provocado pela pandemia de covid-19, João Pereira, há 49 anos no Grupo Folclórico de São Torcato, estaria a preparar mais uma Festa das Colheitas, celebração que traz à tona o passado das gentes daquela vila concelhia – e o primeiro dia é dedicado à vindima e pisada das uvas. Na celebração, as escolas batiam à porta dos lagares para ver de perto a recriação da vindima tradicional: trajes típicos, folclore, carros de bois, cestos de vime. Já não é assim. Mas “cada caso de vindima é um caso”, enquadra Sequeira Braga, presidente da Adega Cooperativa de Guimarães. “Há pessoas para quem que a vindima é um drama, têm de arranjar pessoal, condições e tudo mais. Uma carga de trabalhos que não há durante o ano. Há pessoas que fazem uma festa com as famílias”. Num território vasto, onde a produção amadora e profissional abunda, (ainda) há espaço para tudo.

 

Em São Torcato, a família do Grupo Folclórico fazia a festa tradicional. E João Pereira também a fez. Este ano há vindima “à mesma”, mas não há motivos para celebração – não há “povo vestido à antiga”, nem olhares atentos de quem nunca viu um lagar vivo, lamenta. “No grupo ainda temos a tradição de preservar as árvores, ou então a tradição perde-se. Continuamos a utilizar as escadas, preservando a tradição de há cem anos. Agora as escadas são muito mais pequenas, o meu pai chegou a fazer vindimas com escadas de 27 degraus, o que era quase 15 metros de altura”, recorda.

 

A lei da força

 

As “escadas grandes” que o componente com quase 50 anos de Grupo Folclórico remanesce foram sendo encurtadas. O dote para trepar árvores foi caindo em desuso, os homens foram ficando cada vez mais perto das vinhas. “Antigamente compreendiam-se estes métodos, mas no contexto atual faz pouco sentido, tirando pela questão étnica, de folclore e histórica”, resume Sequeira Braga. O responsável pela Adega Cooperativa e um apaixonado pelo mundo que circunda a produção do néctar fala em “ramadas, bardos e bordaduras, videiras a trepar pelas árvores acima” que ainda existiam em Guimarães à entrada do século. No fundo, “sistemas antigos de produzir uvas que não eram os melhores” se a eficiência na produção fosse o principal objetivo.

Essas mudanças são, para João, sinal de “inteligência”. “Já viu o que é segurar uma escada com 15 metros no ar? Pera ter essa altura tinha de ter grossura, se não vergava toda e podia partir. Nós estamos aqui todos partidos dos ossos por causa disso”, atira. “Ainda sinto mazelas”. Até porque “havia muitos serviços, não havia os tratores e o povo ajudava-se um ao outro”. Reinava a lei “da força”.

 

Este vinho é verde e salta fronteiras

A partir das uvas que João ajudava a colher com a ajuda de carros de bois e as que agora são colhidas com o auxílio de tratores produz-se vinho verde. Quando se fala de vinho de Guimarães fala-se essencialmente desse. A Região Demarcada dos Vinhos Verdes estende-se por todo o noroeste de Portugal, na zona tradicionalmente conhecida como Entre-Douro-e-Minho. A sub-região do Ave – que integra concelhos como Guimarães, Vila Nova de Famalicão, Fafe, Santo Tirso, ou Póvoa de Lanhoso – é sobretudo uma “zona de produção de vinhos brancos, com uma frescura viva e notas florais e de fruta citrina”, denota a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes (CVRVV).

 

Mas “cada vinho é um vinho” e mesmo o produzido no mesmo território pode ter diferentes valências, sublinha Sequeira Braga. Segundo dados da CVRVV, no que toca à produção, o concelho de Guimarães contribuiu com quase dois milhões de litros de vinho verde na campanha 2020/2021. No total, os 47 concelhos que compõem a região demarcada produziram 87 milhões de litros. E há cada vez mais procura além-fronteiras: Estados Unidos da América, Alemanha e Brasil parecem ter tomado o gosto e são, nos últimos cinco anos, os maiores importadores do vinho produzido a partir das uvas da região.

Tendência sentida na Adega Cooperativa que, à imagem de outros produtores da região (já lá vamos), “comercializa a nível bastante bom para outros mercados”. E quando o faz, não exporta só vinho. “Levamos o nome de Guimarães lá para fora. Ao vender uma garrafa de vinho produzida em Guimarães no Japão, estamos a promover a marca Guimarães e a marca da Adega, a cultura e toda a realidade, arquitetura, património e história estão a chegar onde o nosso vinho chega”, sintetiza Sequeira Braga.

Os números dizem que o que é produzido por cá tem chegado cada vez mais longe. Os vinhos verdes, a segunda denominação de origem mais exportada a seguir ao "Porto", estão a crescer 13,87% para 52,3 milhões de euros. Os dados são do Instituto Nacional de Estatística e reportam-se aos sete primeiros meses de 2021.

 

Antes do vinho… o leite

Em Santo Tirso de Prazins, a norte do concelho vimaranense, segue-se por caminhos estreitos e estradas antigas e é-se absorvido pela paisagem vinícola. Hectares de vinha atrofiam o horizonte e a perspetiva é ainda mais esclarecedora a partir das instalações da Adega Cooperativa. A acalmia reina no dia em que o Jornal de Guimarães visita o espaço. O silêncio só é interrompido pelo chilrar ocasional. Agora, já não será assim. A uva começa a chegar nos tratores para ser pesada e tratada. A Adega está instalada numa propriedade agrícola de dez hectares, dos quais três são vinha e é preciso colhê-la. “São precisas entre dez a 12 pessoas a colher uvas na nossa vindima, mais as pessoas que trabalham na adega a tempo inteiro”, explica.

 

Este ano, a Adega Cooperativa de Guimarães espera uma produção abaixo da do ano passado. “Em quilos, as nossas produções variam entre 600 e um milhão de quilos. Em litros, na ordem dos 500 mil litros e os 750 mil litros por ano. É o nosso nível médio de produção ao longo dos últimos anos. Tem vindo a crescer de forma pequena, mas sustentada”, refere o dirigente.

Há duas fases na vida desta adega. Uma antes até 1999 e outra após. A Adega Cooperativa de Guimarães foi fundada em fevereiro de 1962, nas antigas instalações em Fermentões, e esteve lá durante muitos anos. No entanto, “um nível de atividade muito baixo” aplacava o crescimento. “Em 1999 lançámos um projeto, que consistiu na construção desta adega de raiz. A adega antiga estava muito desatualizada. A maneira de fazer vinho não mudou, faz-se como se fazia há dez mil anos, os utensílios e equipamentos para fazer o vinho é que mudaram radicalmente”. Sem esquecer que a produção vinícola depende de vários fatores externos: o clima, nomeadamente – o “grande fator que influencia a agricultura em geral”. “A produção de uvas é feita em exterior e, como tal, está dependente das condições climáticas. Há anos melhores e outros piores, pelo que a produção sofre muitas flutuações”, explica o engenheiro.

Mas o que está na origem do encanto por este vinho fresco que, segundo Manuel Pinheiro, presidente da CVRVV, quer ser mais do que líquido “para se beber na borda da piscina”? Pedro Campos é enólogo e interrompe o olhar atento às uvas que vão chegando à Quinta de São Gião, em Moreira de Cónegos, para responder à questão. É, antes de tudo, importante perceber que os vinhos verdes “têm várias características muito únicas que são atribuídas pelas castas que o produzem, pelo local onde é produzido e pelas tradições a que está sujeito, pelas gentes que o fazem”.

Podemos falar em “hibridez”: “Na região dos vinhos verdes, o que temos visto é que a região tem a capacidade de produzir o vinho com um perfil mais tradicional e tem também a capacidade de produzir coisas muito mais internacionais e com perfil para fora da região”. Pedro Campos e Carlos Barbosa, gerente, estão prestes a fechar mais um dia de vindima na vila vimaranense. A Quinta de São Gião é uma propriedade familiar dedicada à produção de vinhos verdes desde 1972. Foi abandonando a produção leiteira para se dedicar a outro tipo de néctar: o vinho. Aposta certeira. De há uns anos a esta parte, a quantidade de vinha sob a alçada da Quinta de São Gião foi aumentado e fixa-se agora nos 40 hectares. Há até planos para que no próximo ano a vindima já seja feita noutra adega, naquele que será um projeto que pode alavancar a marca para outro patamar.

Carlos Barbosa está ao serviço da Quinta de São Gião há 23 anos. “Estou aqui desde 1998 e na altura tinha a parte técnica da empresa, entretanto as coisas foram crescendo, modificando. Não diria casamento perfeito, mas até à data tem corrido muito bem”, salienta. Tem supervisionado o processo de produção de um vinho que tem que se lhe diga e que vai desfazendo ideias feitas. “Aquele mito de que o vinho verde era ácido, que era verde, quase a sensação que se apanhava as uvas verdes, isso já não existe há uns anos com as técnicas e com as condições de vinha, o maneio da terra”, explica Carlos Barbosa.

“Estamos a falar de pessoas nos seus 50 ou 60 anos e também reparamos que os mais jovens não têm interesse na apanha da uva”, Carlos Barbosa

Contribui também o solo granítico que lhe imprime frescura e mineralidade, “uma textura muito salina, com uma influência atlântica muito grande”, frisa Pedro Campos. Sem esquecer “as tradições das gentes de cá” que criaram “um perfil de vinho diferente dos do resto mundo”.

 

“Não dá para relaxar”

Perto da fronteira com a freguesia de Guardizela, e mesmo num dia pouco amistoso para vindimar, há carrinhas e trabalhadores a sair e a entrar numa vinha da quinta. Por aqui, é tudo gente conhecida. “Somos poucos na empresa, quatro ou cinco funcionários, e recorremos a muita mão de obra externa, pontual. Pessoas que repetem ano após ano e fazem a região toda, seja aqui ou em Fafe, são pessoas que trabalham na agricultura de manhã à noite e já estão habituados, sabem aquilo que fazem, é muito fácil trabalhar com eles, são gente boa”, atenta o gerente. Este ‘calejamento’ é importante, até porque, como diz Carlos: “Durante a vindima não dá para relaxar”.

 

A um par de quilómetros da propriedade, há um ajuntamento de homens cansados (mas sorridentes): circundam um trator e seguram copos meio cheios. Chapéu na cabeça para precaver de umas nuvens que não inspiram confiança e boa-disposição que deixa deduzir que o dia de labuta chegou ao fim. José Faria, 63 anos, é um deles: conhece o circuito de vindimas e só vê benefícios em “vir ajudar a malta”. “Respira-se ar puro, há camaradagem e dá-nos vida. Conhecemos pessoas, fazemos amigos, bebe-se uns copinhos com as amizades novas…”, o raciocínio continuava, mas a chuva dá sinal de querer aparecer. Não impede de continuar a conversa. É só o tempo de tirar o chapéu vermelho, verificar que é coisa pouca, e voltar à descrição de mais um dia de poda.

“Estou a beber o vinho que pisei no ano passado, e isso é bonito” José Faria

José faz parte do lote que a Quinta recruta todos os anos e encaixa na resenha que Carlos Barbosa faz dos trabalhadores que fazem a apanha manual. Mas aqui, tal como em outros pontos do concelho, pode estar um problema ao virar da equina: “Para já, não sentimos dificuldade em obter mão de obra. Estamos a falar de pessoas nos seus 50 ou 60 para cima e o futuro não é risonho, porque também reparamos que os mais jovens não têm interesse na apanha da uva”.

 

“É tudo uma aprendizagem”

É trabalho árduo e mesmo finda a labuta já se combina o dia seguinte. Estamos na primeira semana de setembro e a rotina estende-se até, pelo menos, ao final do mês. A fadiga abate-se no final do dia e há exclamações prontas para aliviar as horas de poda: “Isto dá muito trabalho, é muito mais fácil pegar numa garrafa, deitar no copo e beber”. O tom jocoso de Faria é constante, mas há encanto nas palavras e na forma como são ditas. Explica que cada sessão de poda é também um ensinamento: “Trocam-se sempre umas ideias porque às vezes há formas diferentes de fazer e é tudo aprendizagem, no fundo”.

A chuva começa a cair com mais afinco em Moreira de Cónegos, mas não deixa José Faria ir embora sem uma dose de bucolismo. “Temos a lagarada, vamos pisar as uvas, o que é ótimo: repare-se, estou a beber o vinho que pisei no ano passado, e isso é bonito”. Mote para fechar a conversa. Faria pega no copo para zarpar.

 

A barbela e o porco

Voltamos a São Torcato para ouvir um pouco mais de João Pereira. Na reminiscência, alguma saudade – mas não romantismos. Em Vindima, obra publicada em 1945, Miguel Torga descreve assim um processo que conheceu de perto no Douro: “Pais e filhos jogam naquela lotaria. Não que saia prémio que se veja. Todos o sabem. Os magros vinténs que ficam no fim da novena pouco ou nada adiantam. O que é, enche-se o peito doutros ares, sonha-se à ida, pena-se à volta, e muda-se, varia-se, passam-se quinze dias que não cheiram a tristeza nem a fuligem”

A João Pereira os dias cheiravam a toucinho. Fica no lote de boas recordações o banquete no final do trabalho, qual recompensa. “Era o jantar e tocar concertina até às duas ou três da manhã. Antigamente tínhamos aquela carne de toucinho, com o molho a cair pela barbela abaixo, e íamos lá com o pão de milho buscar aquele molhinho para ter outro paladar. Hoje a carne gorda só faz mal”.

 

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