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Belmiro Jordão: "Procurei sempre ajudar"

Percorreu o mundo do Alasca à Austrália, mas regressou sempre à cidade com as associações e as pessoas a que se queria dedicar. E o Teatro Jordão, emblemático espaço que reabre até ao fim do ano.

20 outubro 2021 > 15:10

Nas paredes de casa, desenhos inspirados em filmes. Nos armários, fotografias da sala do Jordão e dos lugares que visitou. Envolto por memórias preservadas com zelo de colecionador, Belmiro Jordão discorre sobre 88 anos de vida em permanente associação e o cineteatro que a família legou à cidade.

 

Com o Teatro Jordão prestes a reabrir-se à comunidade, qual a memória mais antiga que guarda daquele espaço?

A primeira memória é da inauguração, a 20 de novembro de 1938. Tinha seis anos. Quando se preparavam para o jantar de homenagem, a única coisa que me preocupou foi ir à mesa nos corredores para tirar chocolates. Enchi os bolsos do colete, mas adormeci no camarote e derreti os chocolates todos. A preocupação da minha mãe era ver se me limpava o mais possível para me poder juntar às outras pessoas. Foi uma inauguração muito badalada, como era de esperar. Era uma inovação para a cidade.

 

O que é que a infraestrutura trouxe a Guimarães à época?

Era a recuperação de uma atividade que já não havia há muitos anos em Guimarães. Houve o D. Afonso Henriques e houve o Gil Vicente. Já estavam ambos fechados quando se fez o teatro. Tinha 1.200 lugares, uma coisa invulgar naquela altura. Foi uma obra que o meu avô, Bernardino Jordão, fez, mas não com o intuito do lucro. Aquilo não era rentável. Inicialmente, o meu avô previa fazer uma fábrica de tecidos. Entre 38 e 45, os outros países estavam em guerra e tínhamos encomendas de toda a parte.

 

No mesmo sítio?

No mesmo sítio. Eram terrenos que pertenciam ao Palacete Vila Flor, a casa dele, onde passei a minha infância. Muitos amigos do meu avô incitaram-no a fazer um teatro, porque não havia. E ele então fez. E recorreu a um homem, o Neumann. Era um judeu que fugiu da Alemanha do Hitler. A sua primeira obra em Portugal foi o Teatro Jordão. Trabalhou com o arquiteto Júlio José de Brito, do Porto. Ele tinha inovações que ainda não conhecíamos. E uma delas, a mais apreciada, foi a construção de placas onde assentava todo o balcão. Normalmente, quando havia um vão, havia colunas de suporte. E ele fez todo aquele vão e toda aquela largura sem qualquer tipo de coluna, com um sistema de placas de cimento juntas com aço. Fez toda a construção sem suporte. Aliás, quando vendi o Teatro à Câmara, ainda se via no primeiro balcão uma ponta do parapeito sem massa para se ver a coluna de aço.

 

 

O primeiro filme, Vou ser raptada, é exibido a 24 de novembro de 1938. Fazia sentido a aposta no cinema ser imediata?

Foi desde logo cineteatro. Não se exibia em cinema em Guimarães. Quando queriam ir ao cinema, as pessoas iam normalmente ao Porto. Quando havia tournées de revistas ou teatros pelo país, havia sempre três principais cidades para se exibirem quaisquer peças de teatro: Lisboa, Porto e Guimarães. Em Guimarães, as peças de revista não davam para mais do que um dia. Transportar todo aquele material cénico preciso para uma peça de teatro…

Na década de 40; de 40 a 45. De 45 em diante, no fim da guerra, começaram a aparecer outras casas de espetáculos.

 

Foi a altura de maior rentabilidade?

Sim, mas o negócio não era rentável de todo. Havia uma receita de 20 contos e uma despesa de 22. Até às décadas de 50 e de 60, havia todos os meses meia dúzia de sessões em que o Jordão esgotava, mas as condições de aluguer de filmes como o Ben Hur, o Robin dos Bosques, o Gavião dos Mares ou o 007 eram de tal maneira gravosas que o resultado era nulo. Chegámos a ter filmes em que tínhamos de pagar 65% e 70% da receita ao distribuidor. Os 30% que ficavam não davam para pagar ao pessoal e para as despesas da luz e do aquecimento.

 

Era isso que comprometia a rentabilidade?

Os cinemas começaram a decair, porque não tinham possibilidades de fazer essa exploração; razão que me levou a mim e a mais dois empresários da Póvoa de Varzim a criar uma união de cinemas, a Condex. Era um consórcio de exibidores independentes com um poder de negociação forte junto dos distribuidores. Se não cedessem às exigências, deixava de levar os filmes aos 34 cinemas que detínhamos. Tiveram de se ajustar. Cheguei a ser o presidente do maior grupo de cinemas independentes de Portugal. Mais tarde, com o aparecimento da televisão, o cinema sofreu muito. Havia filmes exibidos simultaneamente na televisão e no cinema, e as pessoas viam em casa, de borla. Os cinemas só recuperaram um bocado na altura em que começaram a ser exibidos os filmes pornográficos. Às sextas-feiras, depois das 00h00, havia um filme no Jordão.

 

“Entristece-me que um edifício de 1.200 lugares, considerado um dos três melhores teatros do país, seja transformado numa sala pequenina”

 

O Teatro Jordão acabou por encerrar em 1993. O desfecho não poderia ter sido outro?

O teatro vivia porque a família tinha possibilidades de manter o negócio sem lucro. Em qualquer outro ramo, acabávamos com a atividade e mudávamos. Ali, houve sempre a preocupação de não fazer os vimaranenses perderem a possibilidade de ver cinema. Foi assim até chegar uma altura em que propus a cedência do teatro. O Cineclube fazia lá as exibições, mas não pagava nada. Depois combinei com a Câmara ceder as quartas-feiras. Era uma receita sem qualquer despesa para nós, porque não tínhamos pessoal. As receitas eram para a Câmara.

 

Quando se deu essa cedência das quartas-feiras à Câmara?

Foi nos últimos cinco, seis anos do cinema. Depois a Câmara resolveu não continuar com essas quartas-feiras culturais. A partir daí, comecei a intervir junto das pessoas que conhecia no Ministério, a ver se o Estado ajudava a Câmara a comprar o teatro. Como o Pedro Santana Lopes era secretário de Estado da Cultura, convenci-o a vir. Ele fez uma proposta, mas o presidente da Câmara disse que não estava interessado. Mais tarde [em 2010], o Teatro foi vendido. A venda [por 2,25 milhões de euros] foi facilitada, sendo paga em 10 anos.

 

Como vê a devolução do Jordão à cidade e as funcionalidades que lhe vão ser atribuídas?

O comprador faz daquilo o que quiser. A mim, entristece-me que um edifício de 1.200 lugares, considerado um dos três melhores teatros do país, seja agora transformado numa sala pequenina e o resto adaptado a outras coisas. Do meu ponto de vista, seria muito mais lógico manter o Teatro Jordão conforme era, um exemplo de construção e de utilização, e arranjar essas salas mais pequeninas no Palácio Vila Flor.

 

Mas o CCVF já tem um Grande Auditório…

O Centro Cultural Vila Flor tem o Grande e o Pequeno Auditório. Os dois juntos não têm a mesma capacidade do Teatro Jordão, construído com tudo o que era necessário para qualquer tipo de espetáculos. Havia espetáculos de circo, de ópera. No cinema, chegámos a ter projeções de 70 milímetros, algo que, em Portugal, só havia no Éden e no São Jorge, em Lisboa. Quando vendi à Câmara, lembrei que também seria vantajoso reavivar o restaurante Jordão. Era um cartão de visita de Guimarães. Quando encontrava pessoas lá fora e dizia que era de Guimarães, falavam-me do restaurante Jordão. Teve, por exemplo, uma importância muito grande no folclore português. As exibições do Grupo Folclórico de São Torcato às quartas-feiras tiveram uma repercussão tal, que foi convidado para um festival internacional em Gales. Convidaram-me a ir a esse festival. Durante a viagem, foi uma festa, com aqueles homens e mulheres de São Torcato, naquela simplicidade própria deles, a ficarem de boca aberta quando viram a Torre Eiffel iluminada ou atravessaram o Canal da Mancha.

 

 

Essa foi uma das inúmeras viagens que fez. Lembra-se do primeiro destino que visitou?

Eu casei em 53, no dia em que faço anos (24 de outubro). Eu e a minha mulher [Maria Alcina Magalhães, que morreu em 2019] fizemos a viagem de núpcias a Espanha, a Madrid, para ir ao Escorial. É um palácio impressionante. Depois procurava sítios que via no cinema ou de que tinha notícias e gostava de ver. Desde o Alasca à Austrália, visitei tudo. De França, Alemanha e Inglaterra, não tenho fotografias porque ia lá muitas vezes. Aos Estados Unidos, fui duas vezes. Ao Brasil, sete ou oito.

 

Alguma cidade ou algum país que o tenha especialmente marcado?

Se eu tivesse de escolher um sítio para viver hoje, escolhia o Canadá. Dos países que visitei, foi o que mais me agradou, pela maneira como o povo convive e pelo comportamento das pessoas. Têm uma delicadeza à britânica, mas são mais abertos e comunicativos. Depois a beleza e o tratamento dos palácios e dos jardins também são qualquer coisa de extraordinário. Fui lá três vezes. A terceira foi a convite do Lions, porque foi fundado no restaurante Jordão. O Rotary também teve reuniões no Jordão, como toda a política.

 

Assembleias-gerais do Vitória também…

Assembleias-gerais do Vitória, sim. As primeiras conversas para a formação do PSD foram tidas no restaurante Jordão, com o doutor Sá Carneiro. Antes de haver a formação de qualquer partido, ele tinha conversas e reuniões comigo, mas principalmente com o doutor Fernando Alberto. Foi ali que se começou a criar o partido antes do 25 de Abril: era o Eurico de Melo, o Sá Carneiro, o Fernando Alberto.

 

Mas voltando atrás, não visitou o Canadá por causa dos filmes?

Não, não. Mas procurava visitar esses sítios que via em filmes. Um dos países que mais gostei de visitar, apesar da sua pobreza, foi o Peru. A maneira de ser das pessoas é extraordinária. Numa aldeiazinha, havia uma feira tradicional só por trocas. Fui lá com a minha mulher e ela queria comprar-me uma camisola de alpaca. Para dar a camisola, a mulher queria os sapatos da minha mulher. No dia a seguir, apareceu à porta do nosso hotel com o casaco para vir buscar os sapatos. Andou quilómetros, mas estava muito interessada. As paisagens são lindíssimas e Machu Picchu é de se ficar deslumbrado. Um país que não voltava a visitar é a Índia, pela diferença de classes. Quando ia num táxi, o táxi que ia à nossa frente deu uma pancada num senhor, atirou-o contra a beira e seguiu sempre. O nosso também seguiu. Eu perguntei: “Então?”. Ele disse-me: “É pária”. Se era pária, não interessava; podia-se matar e seguir. Por outro lado, a praia mais bonita em que estive foi a de Goa. É lindíssima, com os coqueiros até à margem de um areal dourado.

 

“Em São Francisco, a primeira coisa que fiz foi 85 quartos de banho. Dantes havia cinco para 96 pessoas, fora os funcionários”

 

E como olha para o seu percurso como ministro na Ordem de São Francisco?

A Ordem de São Francisco tem sido o trabalho mais gratificante pelo convívio com os idosos e pela dedicação dos funcionários, a quem nunca me cansarei de agradecer. Tem sido uma casa que me marcou. Tenho-me dedicado àquilo de alma e coração. São quase 40 anos dedicados a uma ordem. É mais do que a qualquer uma das empresas da família. Encontrei aquilo miseravelmente conservado. Era uma casa com 130 habitantes, idosos, e cento e tal funcionários. Tinha cinco quartos de banho.

 

Não tinha as melhores condições de higiene, portanto.

Não. Nem as outras casas tinham. O recolhimento das Trinas era aflitivo. Em São Paio, viviam 20 mulheres num quarto, com um quarto de banho só, sem separação. Em São Francisco, a primeira coisa que fiz foi 85 quartos de banho. Dantes havia cinco para 96 pessoas, fora os funcionários. E não havia uma sala de jantar. Comia-se em três pisos diferentes. A comida chegava fria ao segundo ou ao terceiro.

 

A Ordem presta então um serviço bem melhor do que há 30 ou 40 anos?

Sim. Antes, em todas as instituições, as pessoas estavam recolhidas sem quaisquer preocupações de salubridade, nem de saúde, nem de convívio. Não era aceitável que, em 83, uma pessoa não tivesse uma casa de banho, nem uma sala de convívio, nem uma atividade.

 

Como gosta de passar os seus dias? Tem algum hábito de que não prescinde?

Gosto de conviver com os idosos, de conhecer os seus problemas, de apaziguar as suas preocupações. Dediquei-me única e simplesmente a isso. Não estou interessado em desporto, na política, nem nada.

 

“O meu avô ensinou-me sempre a ajudar os mais pobres. Há pouco tempo, um idoso veio dar-me um abraço por o ter metido muitas vezes de borla no cinema”

 

Olhando para o que já passou, a vida em comunidade é o que guarda de mais importante?

O mais importante é que procurei sempre ajudar. Graças a Deus não precisam, mas prejudiquei muito os meus filhos e os meus netos por aquilo que dei a outros. Estive envolvido nas Nicolinas como estudante e fui um dos fundadores da Associação de Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães. Procurava servir os bombeiros. Quando havia um toque de incêndio, todos os meus funcionários bombeiros deixavam o emprego e iam para o incêndio. E eu também ia. Despendi muito tempo e dinheiro. É por isso que não percebo hoje o futebol. Não percebo como uma pessoa se candidata a um clube para tirar proveito. Sou do tempo em que, enquanto diretor do Vitória, assinava no princípio de cada ano uma letra de 400 contos. Se tivéssemos prejuízo, estava garantido por nós. Criei muitas amizades no futebol. Sou sócio honorário da Federação Portuguesa de Futebol, da Associação de Futebol de Braga e do Vitória, porque me dediquei sem qualquer interesse. Mas o que mais me agradou na vida foi o contributo à Ordem de São Francisco.

 

Mesmo não tendo conhecido o seu avô por muito tempo – morreu em 1940 -, houve algo em que o tenha inspirado?

O meu avô ensinou-me sempre a ajudar os mais pobres. Há pouco tempo, um idoso veio dar-me um abraço por o ter metido muitas vezes de borla no cinema. Uma das coisas que me ficou é que havia sempre meia dúzia de rapazes – normalmente era só rapazes – à espera que eu chegasse para entrarem de borla. Isso fez-me lembrar uma coisa que o meu avô dizia ao meu pai. Quando havia cinema, o meu avô deixava os miúdos entrarem de borla. E o meu pai dizia: “Ó pai, como é que quer ganhar dinheiro se está a deixar entrar as pessoas de graça?”. Ele dizia: “São futuros clientes”. Metia-lhes o vício. O que mais me gratificava era meter as pessoas, não para ter futuros clientes, mas para que as pessoas sem possibilidades de ver um filme de cowboys o vissem.

 

Voltando ao cinema, qual o filme da sua vida?

Não tenho um específico. Na juventude, tínhamos apetência por determinados filmes. Depois, mais evoluídos, tínhamos apetência por outro tipo de filmes. Dos filmes que me marcaram na juventude, destaco talvez o Robin dos Bosques. Quando somos novos, registamos e guardamos sempre as memórias. Depois, mais tarde, vi muitos e bons filmes. Gostava muito de filmes de guerra. Aliás, a minha biblioteca é quase toda dedicada a policiais, guerra ou história. Era o que mais me agradava.

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