Cuidadores Informais: sentem o dever de cuidar, mas não os direitos
Sempre estiveram presentes, mas, até 2019, não eram ouvidos. Embora já criado o quadro jurídico, os cuidadores informais vincam: “O Estatuto do Cuidador continua uma mão cheia de nada”.
Acaba por chegar a altura em que os papéis se invertem e aos filhos pesa a responsabilidade de cuidar dos pais. E se se pagar a uma enfermeira ou colocar a pessoa num lar não são opções sustentáveis, por falta de condições económicas ou pelo sentido emocional, a alternativa passa mesmo pelos próprios se responsabilizarem pela pessoa que precisa. Em Portugal, estima-se que existam mais de 800 mil cuidadores informais, que prestam todos os cuidados que as pessoas com doenças necessitam. No entanto, quase 60% dos inquiridos não conhece o Estatuto legalmente em vigor desde 01 de abril de 2020.
“O universo é reduzido a cerca de 800 mil pessoas, mas há mais pessoas no país nessa atividade, que simplesmente não estão registadas, o que revela que há muita coisa por fazer”, explica um dos membros da Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI), Jorge Gonçalves. “Se houver adesão e multiplicação de pessoas que peçam o Estatuto, as coisas vão mudar e os responsáveis pelo poder começam a olhar para isto de forma diferente”,
Apesar do desconhecimento que se sente quanto ao tema, deu-se um salto significativo desde 2019, na medida em que o que outrora era uma atividade clandestina “passou a ter um estatuto e uma personalidade jurídica”, que luta pelos direitos das pessoas que a praticam: direitos como o de descanso do Cuidador Informal, de apoio psicológico e de medidas de capacitação do Cuidador.
Para Jorge Gonçalves, a razão para o atraso da aplicação destas medidas está na “falta de vontade política” do Estado.
“28 anos de carreira profissional e deixei tudo para trás. Foi frustrante, mas ponderei e cheguei à conclusão que o melhor era cuidar da minha mãe” - Marta Vieira
O peito aperta para quem sente a responsabilidade de cuidar dos seus e está encurralado pela falta de meios. Ana Santos cuida da mãe, que apresenta alguns sinais de demência, entre outros problemas. Além de despesas em fraldas, medicação, aluguer de máquina de oxigénio e duas jovens que passam pela manhã para prestar alguns cuidados, Ana acompanha a mãe ao longo dos dias, de segunda a domingo, de manhã à noite, sem tempo para si.
“Tenho de andar sempre com ela, porque já caiu muitas vezes e apresenta sinais de demência. Tenho até de dormir com ela. Psicologicamente sinto-me muito cansada ao final do dia, até porque a mãe tem um feitio muito difícil e é agressiva comigo”, desabafa, “Não me lembro da última vez que tive um tempo sozinha”.
Ana está desempregada e, por essa razão, a tarefa recaiu sobre si, apesar de ter mais oito irmãos. Hoje pensa em registar-se enquanto cuidadora informal para tentar receber alguma contribuição económica. Não sente, contudo, que 443,20 euros sejam suficientes. “Tenho irmãs que me dão um tanto, um irmão que ficou desempregado e não consegue dar-me, mas acho que temos todos de fazer um esforço, porque eu estou nesta situação. Se eles pusessem a minha mãe num lar, ou se fossem pagar a outra pessoa de fora, 1000 euros, se calhar, não chegavam. Por isso, os 250 euros que me dão, para mim, não são nada. Sou família, mas temos de ver a realidade”, conta.
A realidade é que a tarefa de cuidar de um ente querido pode pressionar mais do que a um desconhecido, o que acaba por mexer com o foro mental e psicológico do cuidador. Marta Vieira cuidou da mãe, que sofreu de um tumor nos ovários, ao longo de um ano. Para executar a tarefa abdicou de uma carreira de 28 anos na área da advocacia. “Passado um ano de ser diagnosticada a doença da minha mãe, eu decidi abandonar o meu posto de trabalho. 28 anos de carreira profissional e deixei tudo para trás. Foi frustrante, mas ponderei e cheguei à conclusão que o melhor era cuidar da minha mãe”, diz.
Acompanhou a mãe em tudo, num sentido de missão. Após dezenas de consultas e precisamente 48 sessões de quimioterapia, a mãe acabou por falecer. O cansaço impregnado no corpo instalou-se na mente. “Sofri mais mentalmente do que fisicamente. Tive de tomar antidepressivos. Não conseguia dormir, não conseguia descansar. Então tive necessidade de o fazer. Mas não deixei de ter um sentimento de missão cumprida. Eu tentei dar um final digno à minha mãe, com muito amor e tranquilidade, sem mostrar a minha tristeza”.
“O meu marido todos os meses fazia um calendário e colava no frigorífico para saber os dias em que éramos marido e mulher” – Paula Gonçalves
Para Paula, não foi deixar o seu trabalho o desafio mais complicado, mas antes a gestão familiar que cuidar da mãe, doente de Alzheimer, implicou. “Como podia estar mais presente, fiquei eu a cuidar dela. Tive de abdicar do meu trabalho e, muitas vezes, da minha vida pessoal, enquanto mulher e mãe, porque eu dormia com a minha mãe. O meu marido todos os meses fazia um calendário e colava no frigorifico para saber os dias em que éramos marido e mulher”, começa por contar Paula Gonçalves.
A cuidadora reconhece até que pode ter “negligenciado um bocado o lado familiar” do marido e dos filhos, numa altura em que eles entraram para a universidade. “Senti o facto de não poder estar presente em alguns eventos da vida académica deles, aí senti”, confessa. “Não era conveniente levar a minha mãe para esses sítios, porque a tudo o que envolvesse ambientes diferentes, barulho, muita gente, a minha mãe não reagia bem. A nível de marido e mulher também senti que negligenciei, mas eu tenho um marido cinco estrelas, ele compreendeu e ajudou muito. Normalmente nestes casos, o casamento acaba”, acrescenta.
Paula Gonçalves foi uma das pioneiras na luta pelo Estatuto do Cuidador. Na altura em que cuidou da mãe, de 2010 a 2018, fê-lo sem quaisquer apoios ou reconhecimento enquanto Cuidadora. Foi a esperança de obter mais condições que a levou a andar por Guimarães numa petição de assinaturas pela aprovação do Estatuto. “Andei de noite, de porta em porta, q quando as pessoas estavam em casa. Era quando eu tinha quem ficasse com a minha mãe. As pessoas não sabiam o que era o cuidador informal e havia quem pensasse já recebia apoio do Estado”, partilha. “Foi difícil, porque um cuidador não tem tempo para si próprio. Eu adiava para ir ao dentista. Tive até um enfarte porque tinha tensões altas, mas não tinha tempo para ir ao médico”, conta.
Apesar das reclamações, “o estatuto do Cuidador Informal continua uma mão cheia de nada” e ainda se aguarda o reconhecimento do “papel fundamental” destas pessoas. “Era só fazer contas. Sabemos que se houver cuidados de saúde a tempo, evitam-se despesas enormes do Estado em hospitais. Os cuidadores desde sempre pouparam milhões ao Estado, por isso esse devia prestar mais apoio. Isto tem a ver com alguma civilização e dignidade humana”, finaliza o voluntário da ANCI.






