Destapa-se a cidade a sul para a cobrir com um manto de casas
A revolução dá-se a régua e esquadro. Já se veem os limites dos futuros lotes de habitação na urbanização Cães de Pedra, entre dúvidas sobre impacte ambiental e preservação da memória industrial.

* com Tiago Mendes Dias
Da sacada de Manuel Araújo, num complexo habitacional listado a cor de barro na Rua Cães de Pedra, o horizonte “ficou mais bonito”. O cenário perdeu elementos, vai ganhando outros que seduzem o olhar do vimaranense de 80 anos. “Isto agora já parece uma urbanização, mesmo sem os prédios que ainda se vão fazer”, indica. É alguém que se habituou a coabitar com património industrial que picota a cidade.
Nasceu na Rua da Ramada, indissociável à indústria de Curtumes e ao processo de industrialização de Guimarães, e mora há 32 anos nos arrabaldes de um quarteirão em transformação (e onde a pegada fabril esteve muito tempo a descoberto) . “Isto estava tudo a monte”, recorda, na ombreira de sua casa, num dia de sol que aclara os 66.500 metros quadrados desbravados. Ainda há pouco tempo, “tinha a fábrica e uns armazéns mais para trás. De resto era tudo arvoredo e lixo”.
Manuel Araújo viu de perto as antigas fábricas que ocupavam o quarteirão delimitado pela Rua da Caldeiroa serem demolidas. E vai ver nos próximos tempos a materialização de uma urbanização composta por dois novos arruamentos, 17 lotes habitacionais e um supermercado que vai começar a operar dentro de semanas. Estampa de tempos idos, uma imponente chaminé laranja da antiga Fábrica de Augusto Luciano Guimarães & Filhas, representativa de um passado industrial, rompe em direção ao horizonte.
O pequeno arruamento onde mora o octogenário alberga também Óscar Gonçalves e Ana Fernandes. O casal testemunhou a demolição da Fábrica do Cavalinho, têxtil que laborou até à primeira metade dos anos 90, e vê agora uma via à porta de casa a ligar a urbanização à Avenida D. Afonso Henriques. Os muros foram abaixo, o sarçal desapareceu. Óscar dá conta da saída de vista do inox. “Desapareceu todo”, aponta e lembra a “grande caldeira” entretanto retirada. Agora, está “tudo mais limpo”. “Temos uma vista bonita, vemos a cidade toda para o lado de lá [a norte], vemos o castelo, o centro da cidade, mas do outro lado não tínhamos nada. Assim ficamos mais bem situados”, achega Ana Fernandes. Desapareceu também da paisagem a Herculano & Pimenta: ou a antiga Fábrica do Minhoto que, em 1963, passa a pertencer família que é proprietária do quarteirão.

“Um sonho” congeminado em família
“Este projeto fará renascer um quarteirão onde existiam fábricas antigas, completamente devolutas, como a do Minhoto, do Arquinho, do Cavalinho, da Jodimonte. Vai ficar uma zona nobre, quando tínhamos ali uma zona esquecida e abandonada”. As palavras são do promotor Rui Herculano, da imobiliária HJF. “O novo quarteirão será um novo quarteirão na cidade”, continua. Salienta que a urbe renovada “estará no centro da cidade, onde se vão integrar novas ruas, com zonas preparadas para habitação, comércio e serviços, hotelaria e áreas verdes de lazer, a pensar num conceito acolhedor para viver”.
No contrato de urbanização assinado entre a proprietária do terreno, a sociedade responsável pela cadeia espanhola de supermercados Mercadona em Portugal, Irmãdona, e a Câmara Municipal de Guimarães lê-se que a proposta prevê “a criação de 18 lotes”. O texto fala na importância de “devolver à cidade de forma refuncionalizada e requalificada”. O projeto HJF é de João Pedro Serôdio, arquiteto e docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto.
Rui Herculano fala num “sonho” do pai, o empresário Herculano Fernandes, que empreendeu construção do Hotel de Guimarães e adquiriu o Hotel Fundador. “Isto começou com a compra do Cavalinho em 1998. Comprámos a fábrica do Cavalinho em leilão em 1998. O meu pai já tinha a Fábrica do Minhoto, onde estava a sede da empresa Herculano & Pimenta. Começou aí a nascer a ideia deste projeto”.
Esta não é a primeira vez que a família tenta materializar o que foi idealizado pelo fundador da Herculano & Pimenta. “Tivemos dois projetos aprovados na Câmara Municipal. Tivemos um primeiro aprovado por muitos anos, mas veio uma crise imobiliária e ficou em stand by. Quando submetemos um novo projeto à Câmara, foi sempre visto viu com muitos bons olhos, quer pelo presidente e pelo antigo vereador Fernando Seara de Sá a mostrarem-se compreensivos. A Câmara percebeu que isto era uma mais-valia para a cidade”, salienta.
"A segunda fase passa pela aprovação dos loteamentos. Ainda não estão aprovados. O contrato de urbanização enquadra a habitação, mas cada loteamento será aprovado pela Câmara”, Domingos Bragança, presidente da Câmara Municipal de Guimarães
O promotor destaca a colaboração do município no decorrer do processo. Para já, a primeira efetivação do contrato de urbanização “está concretizada”, assinala Domingos Bragança, referindo-se às vias. Com a entrada em funcionamento da superfície comercial, os ramais serão abertos. “A segunda fase passa pela aprovação dos loteamentos. Ainda não estão aprovados. O contrato de urbanização enquadra a habitação, mas cada loteamento será aprovado pela Câmara”, ressalva.
O contrato de urbanização faz referência à possibilidade de consagrar uma área forte dominantemente dedicada à habitação que, “se abordada de múltiplas formas, poderá ajudar a responder aos desafios habitacionais que uma cidade contemporânea enfrenta” na atualidade. Estão previsto 693 fogos, “pensados para a classe média-alta”, com a construção a durar entre sete a 10 anos – Rui Herculano assinala que ainda não é sabido se os primeiros edifícios vão surgir em frente ao Centro Cultural Vila Flor ou ao lado do Mercadona.
Domingos Bragança ressalva que agora decisões como a escolha dos materiais de construção estão do lado dos promotores e que o município já não pode intervir nesse capítulo, mas acredita que o empreendimento pode trazer consequências positivas no capítulo da oferta habitacional: “Quero mais habitação, que o território bem precisa, mas quero sempre qualidade, conforto e bom viver. Quando se constroem 500 casas, a oferta faz, à partida, os preços baixarem. Os loteamentos é que vão definir o total de casas. O contrato de urbanização define uma escala global, mas não trabalha ao pormenor”.

Arquinho a concurso em 2023. Antes, um derrube para fazer bingo
Para além de “integrar habitação e comércio, onde sobressai o supermercado Mercadona”, diz Rui Herculano, o contrato de urbanização ainda indicia um “uso público” da Fábrica do Arquinho. “Todo o projeto vai integrar um departamento da Universidade do Minho, numa permuta que fizemos com a Fábrica do Arquinho, que não será para construção de habitação. Foi cedida à Câmara Municipal, que vai fazer uma parceria com a Universidade do Minho para integrar lá novos cursos”, sublinha.
Reconhecida pelo portão, a antiga têxtil fundada por António José Pereira de Lima deve-se transformar num dos departamentos da Escola de Engenharia da Universidade do Minho, vocacionado para a engenharia aeroespacial. O projeto está, segundo Domingos Bragança, “a ser elaborado”. Vai na primeira fase. Já fizemos o programa funcional. Estão-se a proceder aos estudos geotécnicos para preparar o procedimento concursal para o projeto definitivo de arquitetura e de engenharia”, afirma ao Jornal de Guimarães. O desígnio passa por levar a obra a concurso no próximo ano.
Dois passos a leste, um néon deixou de piscar intermitentemente na Avenida D. Afonso Henriques e até há pouco tempo as letras vermelhas garrafais sinalizavam uma casa de bingo. Agora, um vimaranense mais distraído pode nem dar por ele. O edificado lá continua, paredes meias com o edifício Vila Flor – mas não por muito tempo. Um dos resquícios do desbotamento da Avenida D. Afonso Henriques, o antigo Bingo do Vitória SC vai ser demolido.
Domingos Bragança salienta que o projeto está com outro promotor, mas que “brevemente” o arruamento vai despir-se de mais um edificado que o ladeia. “À partida, teremos brevemente a demolição desse edifício. Há um projeto que obriga à demolição e à reconstrução. Aquele edifício do bingo está decrépito e uma nódoa na paisagem urbana”, afirmou em declarações ao Jornal de Guimarães.

Uma só obra ou vários loteamentos: como se mede o impacte ambiental?
Com o Pedido de Informação Prévia aprovado pela Câmara Municipal, Rui Herculano destaca ainda a “muita área verde” que o loteamento vai disponibilizar, principalmente na vizinhança da Avenida D. Afonso Henriques. “Teremos uns edifícios vazados em frente à Avenida D. Afonso Henriques. Por debaixo dos edifícios, teremos jardins onde as crianças poderão brincar e correr, e os adultos passear”, descreve um dos responsáveis pela entidade promotora.
Mas há olhares mais céticos quanto ao respeito da nova urbanização para com o ambiente: é o caso de José Cunha, antigo presidente da Associação Vimaranense para a Ecologia, que chama a atenção para os 693 fogos previstos. O Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental (RJAIA) “estipula que a avaliação de impacte ambiental (AIA) é obrigatória em operações de loteamento urbano com construção superior a 500 fogos”, avisa.
Sem “conhecimento público de qualquer processo de AIA”, expôs o caso à Inspeção-Geral do Ambiente, da Agricultura, do Mar e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) a 08 de março de 2021, com o conhecimento da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), entidade a que cabe essa fiscalização por regiões.
Depois de uma exposição sobre o caso à figura do Provedor de Justiça, José Cunha obteve uma resposta a 08 de fevereiro de 2022; apesar de reconhecer que a construção de 693 fogos exige AIA, a CCDR-N indica, na nota em questão, que “não existe nenhum alvará de loteamento emitido nem processo de licenciamento de operação de loteamento em curso”, segundo a informação obtida junto da Câmara Municipal. A entidade afirmou, por isso, desconhecer qualquer “pedido de avaliação de impacte ambiental sobre o projeto em questão”.
Apesar da posição da CCDR-N ir ao encontro da justificação fornecida pela Câmara, José Cunha defende que “a urbanização do terreno” se realizou segundo a premissa dos 693 fogos, pelo que acredita existir uma “contraordenação ambiental muito grave” no quarteirão Fábrica do Minhoto. José Cunha sublinha o facto de a AIA preceder as normas inscritas no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação; sem esse procedimento, todo o loteamento em curso pode ser “legalmente nulo”, entende.
A propósito das implicações ambientais dos eventuais 693 fogos, Domingos Bragança assegura ao Jornal de Guimarães que os “loteamentos ainda não foram feitos”, mesmo com o projeto arquitetónico já concebido. Se os estudos de impacte ambiental forem requeridos à medida que os processos de loteamento para habitação avançarem, o autarca promete que os fará.
A impermeabilização decorrente da construção e do alcatrão que cobre as novas ruas é outra das circunstâncias a que o presidente da Câmara se diz atento. “Estamos a realizar um estudo das águas pluviais”, refere. “Se forem necessárias infraestruturas adicionais em relação às que temos para as águas pluviais, teremos de as fazer em conjunto com o promotor”. Esse processo tem a supervisão da Agência Portuguesa do Ambiente, que tenciona saber como “são conduzidas as águas pluviais”, completa.

A densificação requer “equilíbrio”
O designado Quarteirão Fábrica do Minhoto é a mancha mais visível da expansão urbana em curso no sul da cidade, mas não a única. O projeto de arquitetura para as imediações da estação ferroviária, a cargo da empresa Endutex, está “quase a ser aprovado pela Câmara”, devendo avançar para o terreno neste ano, revela Domingos Bragança. Anunciado a 06 de novembro de 2018, o empreendimento prevê 250 fogos, alguns deles a “custos controlados”. “Estou a negociar com o promotor para garantir”, prossegue.
Ainda junto à linha do comboio, surge o edifício do Castanheiro, onde nasceu a primeira fábrica têxtil moderna da cidade-berço, em 1884. Há também um projeto imobiliário para ali destinado, “ainda em análise”. Embora aceite construção nova, o presidente da Câmara quer o edifício mais reconhecido, com as suas “frentes simbólicas da época industrial”, transformado em “centros de negócios ou de engenharia industrial”.
Essas ideias acarretam uma previsível avolumar do tráfego automóvel na fronteira entre Creixomil e Urgezes. Perante essa carga que se espera maior, a Câmara acena com duas respostas: o desnivelamento da rotunda do Salgueiral, em articulação com a Infraestruturas de Portugal, e uma nova rua empedrada, paralela à ecovia, entre a Avenida D. João IV e o parque da cidade.
"Cada vez mais se põe em causa o modelo de crescimento das economias e das cidades. Podemos continuar a discutir onde adicionamos, mas também poderemos pensar onde subtraímos”, Ivo Oliveira, Escola de Arquitetura, Arte e Design - UMinho
Se Guimarães está segura de que há “procura de habitação para a qual não existe resposta”, constatando-se a “necessidade construir mais”, então a aposta “em espaços de proximidade ao centro urbano mais consolidado” faz sentido, diz ao Jornal de Guimarães o especialista em urbanismo, Ivo Oliveira. Ao analisar a renovação urbana que se perspetiva a sul, o docente da Escola de Arquitetura, Arte e Design (EAAD) da Universidade do Minho prefere o aproveitamento dos “espaços de interstício”, com distâncias até 15 minutos a pé dos “grandes equipamentos da cidade”, do que a aposta em locais que “estarão muito dependentes do automóvel”. “A aposta em mais densidade e habitação numa área central vai trazer uma carga. Mas se fosse para outro sítio qualquer, essa carga iria deslocar-se”, sustenta o arquiteto.
Autor da publicação “O renascimento das cidades no sistema territorial dos espaços públicos no noroeste português” (2017), Ivo Oliveira realça que a gestão urbana deve priorizar os “equilíbrios” entre a densidade urbana e os espaços livres, entre o automóvel e os restantes meios de transporte, entre habitações para “os mais ricos” e para “os mais pobres”. Até as designadas “áreas expectantes”, com “espaços abandonados ecológicos” para a fauna e para a flora devem ser acautelados. “Podemos criar alguma densificação, mas precisamos de solo permeável para uma cidade verde e inovadora”, resume.
A transformação das cidades, com “novas casas e novas formas de habitar”, subjaz assim uma questão que merece discussão em Guimarães e todas as restantes urbes: “Cada vez mais se põe em causa o modelo de crescimento das economias e das cidades. Podemos continuar a discutir onde adicionamos, mas também poderemos pensar onde subtraímos”. Para Ivo Oliveira, o debate ainda não chegou a Portugal, nem sequer a Lisboa e ao Porto. “O Porto tem recebido edifícios com milhares de metros quadrados dedicados exclusivamente aos serviços, com grandes áreas de estacionamento. A maioria das transformações que hoje se veem seguem modelos com 20, 30, 40 anos”, analisa.

Uma cidade a precisar de um museu
Polo agregador de indústria, o local onde está a nascer o Quarteirão Fábrica do Minhoto ficou “despido de vestígios arquitetónicos”. José Manuel Lopes Cordeiro é presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial e director do Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave. A forma como se moldou a urbanização replica o que é feito noutras latitudes do país. “A haver uma iniciativa em termos de preservação de património teria sido necessário estudá-la antes da demolição. Agora, o terreno está completamente vazio e é um terreno enorme”, refere.
Ainda não se sabe que requalificação irá avante no Arquinho, mas o cenário ao redor do edificado indica que por ali “já não há património”. “Como foi tudo demolido, com a exceção da chaminé, não sei bem o que poderá ser feito em termos de defesa de património. Já não há património”. E isso “é uma pena”, lamenta. Até porque Guimarães “ainda é uma das cidades portuguesas com um património industrial significativo”.