Do papel ao ecrã, do combate ideológico ao pluralismo: 200 anos de imprensa
O número três do Azemel Vimaranense, periódico liberal, data de 25 de outubro de 1822. O tempo para aprofundar temas e as relações com os poderes são desafios e, época de transição digital.

Num tempo em que o analógico e o digital se entrelaçam – jornais, revistas, sons das ondas de rádio convivem com sites e redes disseminadoras de informação mediante algoritmos -, assinala-se o 200.º aniversário da publicação do primeiro periódico de Guimarães (e do Minho). Chamava-se Azemel Vimaranense e defendia o liberalismo, ideologia a dar então os primeiros passos, em consonância com a Lei sobre a Liberdade de Imprensa, de 04 de julho de 1821, e a Constituição de 1822, aprovada a 23 de setembro. A edição número três, de 25 de outubro, é a mais antiga disponível para consulta, na biblioteca da Sociedade Martins Sarmento.
“Quando aparece, aquelas ideias eram novas. Não havia um enraizamento das ideias liberais na cidade (…). Muitas questões não eram sequer locais. Tinha acusações, muito violentas até, respondidas noutros jornais que nem eram de Guimarães”, realça ao Jornal de Guimarães o historiador Francisco Brito.
Sem provas que lhe permitam aferir a hipótese, o investigador em história moderna e contemporânea admite que a publicação influenciou a difusão do liberalismo no território. “Quando surgiu, havia poucos liberais em Guimarães, mas, cinco a seis anos depois, há mais de 100 pessoas indiciadas como liberais e presas”, diz, a propósito do regresso temporário do absolutismo sob D. Miguel.
Por essa altura, já o Azemel deixara de circular. Foi preciso esperar até 1856 para o concelho rever a imprensa periódica, com A Tesoura de Guimarães e O Vimaranense. Esse regresso abriu caminho a uma fase em que, por regra, os jornais assumem a linha ideológica – “liberais, católicos, monárquicos, republicanos” -, que perdurou até ao golpe de 28 de maio de 1926.
Apesar dos casos de censura durante a Primeira Guerra Mundial, ela só se institucionalizou durante o Estado Novo, chegando ao ponto de cortar a discussão sobre as obras dos paços do concelho, no Largo Condessa Mumadona, nunca concluídas, detalha. No pós-25 de Abril, os jornais locais, tal como os nacionais, enveredaram pelo “pluralismo de opiniões”, apesar de um breve regresso à transparência ideológica nos anos que se seguiram à Revolução dos Cravos.

O paradoxo da “proximidade” e a exposição às “notas de imprensa”
Enquanto jornalista, Teresa Ferreira sentiu esse viés ideológico pouco depois de começar a trabalhar para o Notícias de Guimarães. Encarregada de cobrir a atualidade política e desportiva, preparava-se para um comício do PCP quando lhe disseram que o jornal fazia isso. Reuniu-se com o diretor, Antonino Dias Pinto de Castro, militante do CDS-PP, que aceitou a sua perspetiva. “Toda a gente conotava o Notícias de Guimarães com um partido, mas ele teve essa abertura. Até então fazia-se assim porque ninguém questionava. Não havia jornalistas profissionais, só colaboradores”, explica.
Até fechar portas, em 2012, o semanário melhorou a nível informativo e de paginação, defende Teresa Ferreira. Mas a “proximidade” no jornalismo, que é uma vantagem – “não caímos de paraquedas nas situações, tudo nos é familiar” -, também acarreta “riscos”, principalmente quando as empresas de média não têm “autonomia financeira para serem independentes”. No final da sua carreira, Teresa deparou-se com um cenário assim, de “pressão” por parte da Câmara Municipal e de “corte de publicidade”, quando escreveu sobre a permuta de terrenos da antiga quinta do Outeiro, onde está hoje a cidade desportiva.
Há uma década fora da profissão, Teresa lamenta que “quem está no poder” não entenda que o trabalho jornalístico é o de “escrutinar o que é público” e ainda hoje tem dúvidas se o “tempo” muitas vezes gasto a aprofundar temas compensa o “desgaste” da profissão.
Outro interveniente na imprensa vimaranense pré-redes sociais, em que havia a permanente “necessidade de ir atrás das notícias”, defende igualmente que “o jornalismo de qualidade exige meios e tempo”, para escapar ao peso crescente das “notícias formatadas dos gabinetes de comunicação”. “Corre-se cada vez mais o risco de não ir além das notas de imprensa que a Câmara Municipal manda”, observa Casimiro Silva,
Esse retrato contrasta com a evolução que presenciou na década de 90 – “quem se interessava pelos aspetos políticos e sociais gostava do jornalismo que se fazia em Guimarães”, vinca. Esse foi um tempo em que transitou da mera colaboração, com publicação de artigos de opinião em O Conquistador, então quinzenário da paróquia de Nossa Senhora da Oliveira, e no Povo de Guimarães, semanário generalista, para jornalista profissional, no Toural, em 1995.
Casimiro deixou a profissão, mas cultiva ainda o hábito de se sentar a ler um jornal – o Expresso, por exemplo, todos os sábados. “Os jornais obrigam-nos a parar, a sentar e a tirar uma nota. Este sentar implica uma reflexão”, afirma, com a convicção de que a imprensa ainda hoje é relevante para quem ocupa funções de poder. “Não acredito que alguém com responsabilidades sociais e políticas em Guimarães não leia jornais. Tem de perceber o terreno em que se move”, refere.
Transição digital “lenta” num tempo em que se acentuam os “desertos”
A informação aloja-se hoje em inúmeras páginas web, e os seus links circulam nas redes sociais, com “gostos” e comentários à boleia. É assim em títulos de referência mundial, jornais nacionais ou publicações locais, mas isso não quer dizer que a transição dos média regionais em Portugal seja ágil.
“O processo tem sido lento, apesar de a pandemia ter derrubado algumas resistências. Estamos a falar de um setor que não é homogéneo. Há o jornal feito por uma pessoa, mas não a tempo inteiro, e projetos mais profissionais, até para vários concelhos”, esclarece Pedro Jerónimo, investigador do LabCom, da Universidade da Beira Interior.
Autor de “A chegada da imprensa regional a um “admirável mundo novo”, artigo científico de 2017 sobre a transição digital no Região de Leiria, o primeiro órgão local a fazê-lo em Portugal, Pedro Jerónimo vinca que o processo tem “dependido muito mais de vontades individuais do que da estratégia das empresas” e nota um padrão no uso das redes sociais pelos jornalistas: contactar fontes e disseminar o que produzem, realça o coordenador do Mediatrust.Lab – Laboratório de Média Regionais para a Confiança e Literacia Cívicas.
A imersão no ambiente digital marca um tempo em que se adensa o risco dos “desertos de notícias”: locais sem qualquer cobertura noticiosa. A Comissão Europeia está disponível a financiar projetos que cartografem esses riscos; em Portugal, é a UBI que está encarregue de um relatório com lançamento previsto para este mês. E há dados provisórios que Pedro Jerónimo revela. “Mais de 50% dos concelhos portugueses em deserto ou em risco de entrarem em deserto. Não têm qualquer órgão de comunicação social ou só têm um”, frisa o coordenador do Mediatrust.Lab – Laboratório de Média Regionais para a Confiança e Literacia Cívicas.
É pouco provável que assim seja em Guimarães, o 14.º município mais populoso do país, com 108 títulos disponíveis na hemeroteca digital da Casa de Sarmento. “Guimarães sempre teve imprensa local diversificada e viva”, atesta Francisco Brito.