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Eis os “Amiguinhos do Barro”: “Sentimos que contribuímos para manter a arte viva”

Num atelier em Fermentões, Maria Fernanda Braga recebe todos os anos pequenos aprendizes da arte da olaria. As possibilidades infinitas do mundo do barro são transmitidas a quem entra num mundo mágico

01 outubro 2021 > 10:35

Que bom que é a cor preferida de Luís ser o laranja: vai ter pela frente uma semana para camuflar a palma das mãos com barro e barbotina – e esse entusiasmo ressalta na voz do aprendiz de nove anos. É um dos 13 “Amiguinhos do Barro” que, numa segunda-feira solarenga e quente, ocupa um lugar à mesa de um atelier na Casa do Povo de Fermentões. Por ali, vai-se voltar a mostrar o “poder mágico que o barro tem”. Palavra de quem anda há mais de 20 anos “à volta” da argila e fez disso vida. Maria Fernanda Braga, oleira, guardiã do ofício, comanda há oito anos uma aventura “cheia de encanto e criatividade”. Pouco passa das 10h00 e já tem a casa cheia de pequenos entusiastas. “Isto agora está por vossa conta”, diz, em jeito de boas-vindas.

Há ternura na voz da ceramista nascida no Algarve, mas que moldou a vida para fazer de Guimarães casa. Por esta altura, quase sem exceção, a rotina de juntar pequenos oleiros repete-se: “É sempre nas férias escolares: de Natal, Páscoa e agora [uma semana antes do início do ano escolar]. Só que como vivemos um momento difícil, no Natal e na Páscoa não existiu, não houve encontro, e agora sinto que estão cheios de entusiasmo”.

Vão chegando a “conta-gotas”: há saudade e afeto na receção. “Ainda temos de esperar, ainda faltam meninos. Quando todos estivermos juntos vamos conversar um bocadinho”, vai repetindo Maria Fernanda a quem chega de sorriso aberto às portas do atelier. Na resposta, prontidão: “Vamos fazer exercício com o barro, não é?”. Vão mesmo. Neste atelier de uma semana há um tema e funciona por etapas. Neste ano, o ponto de partida “são três das muitas mulheres que pertencem à história de Guimarães”: Mumadona, D Teresa, a Rainha Dona Maria II. Tudo começa pelo desenho do projeto – “Como acontece com os arquitetos, aqui também é essencial”, pontua a oleira; no final da semana a ideia materializa-se. 

“Esquecemo-nos do que nos rodeia”

Mas logo na primeira sessão já se mexe no barro, há interação e fazem-se amizades. Na opinião de Maria Fernanda Braga, esta proximidade fez muita falta no ano passado, período em que as porta do atelier não abriram: “Partilhar ideias é muito importante. O barro também pode funcionar como uma conexão à natureza, tem uma função pedagógica muito importante, e as crianças interessam-se muito por isso”.

"Quando estão concentrados no barro, relaxam”, começa por explicar. “Tenho tido bastantes bons exemplos de crianças com dificuldade em concentrar-se e conseguem-no através do barro, além de que também estimula a autoestima, ou seja, o facto de nós conseguirmos fazer algo e o resultado final ser quase imediato. É terapêutico”, assinala a oleira.

Filipa, 13 anos, atesta a perspetiva da tutora. Na sala de pequenos oleiros é a que tem mais experiência. Não sabe há quanto tempo mete mãos à obra e maneja a terra. Sabe, no entanto, que as horas empregues em criar algo do nada são “relaxantes”. “O contacto com o barro abre possibilidades infinitas, de fazer o que nós queremos, e com isso trabalhamos a parte criativa. Nós focamo-nos no nosso trabalho e esquecemos o que está à volta”, explica. Fala ao Jornal de Guimarães no intervalo da sessão de duas horas. A primeira foi passada a delinear o projeto – Maria Fernanda Braga cedeu um livro acerca de Mumadona Dias a todos os “amiguinhos” para inspiração – e agora entre em cena o “protagonista”: o barro.

Mesmo sem saber há quantos anos começou a “brincar” com esta matéria-prima – ou a fazer “ginástica com as mãos”, como atenta Maria Fernanda Braga, – Filipa sabe que “há poucos oleiros em Portugal”. E isso também dá alento para o devir: “Sabemos que é é uma arte não muito divulgada. E não é que cada um de nós vá dar um oleiro, mas sentimos que contribuímos para manter a arte viva”. 

Um passaporte em forma de cantarinha

E se há alguém que tem contribuído é quem admite aos pequenos entusiastas que tinha saudades da companhia e de ver mãos pequenas e flexíveis modelarem a matéria-prima. Maria Fernanda Braga começou há mais de 20 anos: sabe e ensina a fazer; molda e ensina a moldar. Não é filha de oleiros, não é originária de terra de oleiros, não aprendeu a arte em nova. O “passaporte” para Guimarães acabou por ser uma cantarinha oferecida pelo marido. O casamento trouxe a algarvia para o berço e por cá começou a talhar uma carreira profícua.

“Cheguei aqui por casamento. Tem sido uma história interessante, consegui integrar-me na comunidade e tenho de destacar a importância da Casa do Povo de Fermentões – não posso mesmo esquecer. É quase como que as mãos do oleiro: temos uma ideia, mas depois para a pôr em prática precisamos de muitas coisas, e esse apoio é essencial”, refere. Para além de cantarinhas – obra emblemática no percurso da oleira –, outras peças decoram a sala de trabalho. Mas mais patente do que isso é a paixão partilhada, a comunhão: “Apaixonei-me pelo barro e não consegui imaginar fazer outra coisa que não fosse dar continuidade ao barro”. Assim surgiu a vontade de partilhar com outras pessoas, de todas as idades, “o poder mágico que o barro tem”. Como explica a artesã, “com uma bola de barro podemos construir o infinito”.

 

Luís tinha saudades disso. Enumera o que já lhe saiu das mãos, e a lista condensa figuras históricas como D. Afonso Henriques, passando por personagens da cultura popular como o Bob Esponja. Tudo é possível numa arte que conjuga os quatro elementos: a terra do material, a água para o moldar, o ar para secar a peça e, claro, o fogo para a cozer. Todo este contexto faz com que o registo “seja muito pessoal”, algo fecundado no momento.

Muitos desses momentos de inspiração de Maria Fernanda Braga ficaram plasmados nas muitas obras que já expôs em diversas latitudes. Já lá vão mais de duas décadas desde o encontro com o mestre Joaquim Oliveira, quando tudo começou. “Venham mais 20”, vinca a ceramista. Ela estará por cá, para receber os muitos “amiguinhos” que ainda vão a tempo de dar de caras com as possibilidades “infinitas” de uma bola de barro.

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