Há freguesias de Guimarães que se replicam lá fora pelos emigrantes
Na fronteira com o Mónaco, um habitante de Longos encontra pelo menos 500 conterrâneos. Mas há mais casos vimaranenses Europa fora em que a ligação à freguesia se perpetua no destino de emigração.

A primeira imagem do Mónaco ainda persiste nas recordações de Jorge Gomes; o autocarro seguia pela autoestrada e, chegado a La Turbie, “aldeia nas alturas da montanha”, começou a descida rumo ao destino. “Saímos numa pequena estrada para descer para o Mónaco para Beausoleil. Ia no autocarro, encostado ao vidro. Quando descíamos a montanha, só se via mar, muitos imóveis, muitas palmeiras”, conta ao Jornal de Guimarães.
Agosto de 1991 estava a terminar, e Jorge emigrava com uma irmã feito o 2.º ano do então Ciclo Preparatório. Estava prestes a reunir-se os pais e a irmã mais nova em Beausoleil, a comuna francesa dos Alpes Marítimos que toca o principado a norte e casa de 13.358 pessoas, segundo a estimativa mais recente do Instituto Nacional de Estatística e Estudo Económico, de 2019. Cerca de 35% da população – 4.675 pessoas, sensivelmente – é de origem lusa, e uma parte significativa desse grupo partiu das freguesias a noroeste de Guimarães, envolventes á vila das Taipas: São Martinho de Sande, Balazar, Santa Leocádia de Briteiros, São Salvador de Briteiros e Longos, como Jorge Gomes e toda a família.
Numa esplanada da Pastelaria Europa, ponto de encontro por excelência para uma comunidade que duplica em agosto, com os seus emigrados – tem, fora da época dos regressos, 1.372 habitantes, segundo o Censos 2021 -, o hoje vereador na Câmara Municipal de Beausoleil contempla o empreendimento que ajudou a construir na rua da Murteira, a cargo dos Irmãos Vieira, antes de partir. “Não correu bem, porque andei três meses a trabalhar e não me pagaram um tostão. Depois fui trabalhar para uma estamparia nas Taipas, antes de partir”, justifica.
Quando reencontrou o pai, Augusto, e a mãe, , Jorge deu-se logo conta dos “muitos emigrantes de Longos” que já lá estavam. Regressou à sala de aula e permaneceu por aí até aos 16 anos, num processo de integração que a escassez de portugueses tornou “difícil”, e virou-se depois para a construção, como ajudante numa empresa cujos sócios eram de São Martinho de Sande. A decisão que o viria envolver decisivamente com toda a comunidade lusa surgiu aos 21 anos: comprou ao tio um bar-restaurante que servia diárias, petiscos e futebol. “Não era qualquer um que tinha a Sport TV. Atraíamos muita gente”, resume.
A bola despertava emoções à flor da pele e o barulho que levou os vizinhos a queixarem-se e o presidente da Câmara de então, Robert Vial, a fazer-lhe “a vida negra”. “Havia barulho, mas nada de zaragatas. Fechou-me o estabelecimento por um mês e depois enviou-me uma carta a dizer que queria fechar seis meses”, recorda.
“Os meus sogros estão lá há 30 anos. Os meus pais já estão cá. É sempre bom quando uma pessoa chega aqui e vê os pais, irmãos, tios e primos. E notamos que somos bem recebidos”, Filipe Rodrigues, 29 anos, emigrante em Beausoleil com origem em Longos
Jorge abriu mão do seu “ganha-pão”, mas deparou-se com a oportunidade de responder em 2008, quando Gérard Spinelli o convidou a integrar a sua lista às Eleições Autárquicas de 16 de março, que viria a ganhar com 55% dos votos. “O presidente atual disse-me que a comunidade portuguesa era importante. Pensei que era a ocasião para responder ao antigo presidente, que me tinha obrigado a vender o estabelecimento”, esclarece.
Passados 14 anos, Jorge encarrega-se do urbanismo, das acessibilidades, da “segurança e da limpeza” de uma vila repleta de cafés, restaurantes e minimercados lusos. Há até uma agência da Caixa Geral de Depósitos. Outra das funções do vereador que divide o tempo na Câmara com o seu emprego na construção é a relação com as associações portuguesas: a Association Culturelle Franco Portugaise de Beausoleil e o Rancho Folclórico Portugueses de Beausoleil. “Já foi lá o José Luís Carneiro, quando era secretário de Estado das comunidades portuguesas. Em maio, levámos 10 alunos de uma turma de Beausoleil à Assembleia da República, a Lisboa”, frisa, para dar conta do intercâmbio em curso com o Estado português.
A dimensão comunitária da emigração lusa alastra-se a território monegasco. Filipe Rodrigues relaxa num outro ponto da esplanada, mas tem a concertina sempre à mão para dar música. Seguiu as pisadas do pai no Rancho Folclórico de Santa Cristina de Longos e mal rumou a Beausoleil, com 18 anos, para se evadir à “crise e aos salários não muito altos”, associou-se ao Grupo Folclórico da Associação de Portugueses do Mónaco. “Eu tinha lá família: tios, primas, primos. O meu pai orientou-me para ir para lá para a construção, como a maioria das pessoas. Como gosto do folclore, da borga, do convívio com as pessoas, estou no grupo há 11 anos”, esclarece.
A companhia de milhares de portugueses, entre os quais 400 a 500 oriundos de Longos, ajuda-o “a sentir-se em casa” num território por vezes separado por meros passeios de rua; a diferença mais significativa é até a dos preços dos terrenos, com Beausoleil entre os seis e os oito mil euros por metro quadrado e o Mónaco acima do 20 mil. “É impossível viver no Mónaco. É muito caro. Em Beausoleil, começa a ser puxadito, mas uma pessoa tem de viver e dormir em algum lado”, nota.
Apesar da familiaridade do local que o acolhe por 11 meses ao longo do ano, Filipe Rodrigues tem regressado à Longos natal todos os verões, inclusive na pandemia. É “sempre bom” rever pais, irmãos, tios e primos e constatar que se é “bem recebido”. O testemunho de Jorge Gomes é semelhante: “Beausoleil é a minha casa, mas desde que estou lá só por uma vez falhei um agosto cá”.

Emigrar com licença num tempo da “viagem a salto”
À porta do Café Central, em Rendufe, pai e filha trocam umas palavras em francês. Interpelado pelo Jornal de Guimarães, o homem apresenta-se como Manuel Martins, cidadão nascido a 22 de março de 1945, em São Vicente de Passos, freguesia de Fafe contígua àquele território vimaranense no vale de São Torcato. Em criança e adolescente, habituou-se a levar gado e legumes para as feiras, fosse na cidade-berço, no Porto ou em Lisboa, onde passou quase toda a adolescência.
Obrigado a fazer esse transporte a pé, teve a oportunidade de emigrar em 1963 e aproveitou-a. Montluçon, no coração de França, era um destino que contrastava com o sol e o mar ao largo do Mónaco; o cinzento da indústria marcava posição entre o verde dos campos. Depois de quatro anos a apanhar nozes, Manuel tirou a carta de condução e mudou-se para a fábrica de pneus da cidade, a Dunlop.
Aí, encontrou a estabilidade laboral que o acompanhou vida fora – deixou a empresa em 2000, numa fase de muitas saídas, e esteve a “receber o mesmo” no fundo de desemprego por três anos, até se reformar aos 58 -, mas também o acidente que lhe roubou o polegar direito e o obrigou a mudar de tarefa. “Colocaram-me em frente a um computador, a ver se a goma dos pneus estava boa ou não”, detalha. “Estava todo o dia sentado, mas perdia 200 francos por mês, mais ou menos 14 contos [70 euros]”.
Um dos pormenores nesta jornada de emigrante com 59 anos foi a legalidade de todo o processo entre o convite para rumar a França e a chegada ao destino. “O meu irmão estava lá. Para fugir à tropa e não ir para Angola, mandou-me uma carta de chamada e arranjou-me um patrão. Fui legal, não a salto. Até a merenda me pagaram. Fui com comboio e tudo”, conta.
A peripécia deste fafense contrasta com o paradigma da emigração portuguesa dos anos 60 e 70, com a Europa como destino, em particular a França. “A maioria faz a viagem a salto. Houve mais de um milhão de emigrantes de forma clandestina, vai Pirenéus”, estima Daniel Bastos, historiador, consultor do Museu das Migrações e das Comunidades, em Fafe, e autor do livro Comunidades, Emigração e Lusofonia – Crónicas, apresentado neste ano.
“O Estado Novo, de forma dúbia, aproveitou ou tolerou a emigração. Por um lado, era considerada ilegal. Por outro, o regime tinha nessa via um esvaziar da panela de pressão social e política em Portugal, de contestação, e ainda remessas enviadas pelos emigrantes”, Daniel Bastos, historiador e consultor do Museu das Migrações e das Comunidades, em Fafe.
As motivações para o risco eram várias, acrescenta: “Estreiteza de horizontes”, “salários agrícolas baixos e precários” e, principalmente, o início da Guerra Colonial, em 1961. Enquanto os jovens do tentavam fugir ao serviço militar, o Estado Novo dificultava “a licença e a legalização” para se deixar o território, ainda que tenha começado a descortinar vantagens no fenómeno e a tolerá-lo “de forma dúbia”. “Por um lado, era considerado ilegal. Por outro, o regime via um esvaziar da panela de pressão social e política em Portugal e ainda remessas enviadas pelos emigrantes”, realça Daniel Bastos.
Algumas das marcas frequentemente associadas a quem parte – “amealhar para um dia ter um carro, construir uma casa e voltar à terra”, o avolumar do fenómeno pelo “tio que chama o sobrinho” – ganharam então realce, constata. A proximidade na angariação de novos emigrantes levou a que comunidades oriundas de Portugal se trasladassem para vários pontos da Europa; em 2016, ano em que se geminou com Guimarães, Montluçon albergava cerca de quatro mil habitantes oriundos de São Torcato, Gonça, Atães e Rendufe. “Encontrei algumas pessoas daqui. Conheço muitas de vista”, corrobora Manuel Martins.
Essa trasladação cimenta-se, muitas vezes, através de associações que preservam usos e costumes, agilizando “a integração” emigrante nos novos lares, sejam eles na Europa ou na América do Norte, sublinha Daniel Bastos. Em Montluçon, já surgiram quatro organizações com raízes lusas: a Les Amis Unis, a France-Portugal, a Souvenir du Dienat, agora parada, e a Estrelas do Norte, esclarece Nathalie Jorrand, de 48 anos, a filha que acompanha Manuel nestas férias.
Mesmo sem nacionalidade portuguesa, Nathalie habituou-se “à cultura” dos pais desde criança e tece-lhe elogios, sobretudo à comida. “Aprendi comida portuguesa com a minha mãe. Gosto muito de massa com feijão vermelho, da sopa, da vitela e do bacalhau no forno. Os meus amigos já estão à espera do bacalhau que vou levar daqui. Por norma, gostam”, confidencia. O pai, sorridente, acena com a cabeça.

“Temos a nossa comunidade muito unidinha”
França permanece o destino número um dos emigrantes portugueses – e por larga margem. Segundo dados do Observatório da Emigração, associado ao ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, havia, em 2021, 598.500 habitantes nascidos em território luso. É um número que supera em mais do dobro o do segundo destino mais procurado: a Suíça albergava, em 2020, 210.731 pessoas nascidas em Portugal, apresenta a mesma instituição.
Apesar de insuficientes para cartografarem a distribuição dos vimaranenses pelo estrangeiro, os atendimentos prestados em 2021 pelo Gabinete de Apoio ao Emigrante da Câmara Municipal de Guimarães parecem seguir a mesma linha; essencialmente utilizado “para apoio nos processos de reforma e informação sobre o Programa Regressar”, o serviço realizou 136 atendimentos a vimaranenses residentes em França – a maioria -, na Suíça, na Alemanha e no Luxemburgo, dá conta uma nota enviada ao Jornal de Guimarães pelo serviço criado em 2009, em protocolo com a Direção-Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas.
Um dos emigrantes que já neste ano contactou o município, a propósito de uma campanha solidária que angariou 2.150 euros para os refugiados ucranianos acolhidos em Guimarães, é Armindo Vaz. Membro da Juventude Católica Operária e dirigente do Clube Recreativo de Candoso na juventude, o vimaranense chegou em 1989 ao cantão de Zug, na Suíça, e abraçou a vida comunitária e associativa: integra a Missão Católica da Suíça Central, o sindicato dos trabalhadores da construção civil (Unia), agora envolvido numa ação contra o “banco de horas”, o Rancho Folclórico Aldeias de Portugal de Baar – Zug e os Amigos Motards de Zug. “Sempre fui incutido a estar na sociedade ao serviço do outro. Podia chegar à Suíça e estar muito bem, a trabalhar e a ganhar o meu dinheiro, mas não era completamente eu”, realça o emigrante de 58 anos, natural de São Martinho de Candoso.
Agosto é tempo de regresso às origens, preservadas junto à capela de São Bartolomeu, um recanto na encosta das Senhoras do Monte com vista para a cidade e para Pevidém. “Nasci e cresci aqui. Era uma zona de muita miudagem”, aponta. Ao ingressar no mercado de trabalho, passou por uma fábrica de sapatos e por uns cafés na cidade, mas o que o satisfazia era o ar livre e o “gosto” de ver algo que ajudou a construir, ao “passar aqui e ali”. Então mudou-se para a António Domingos – Construções São Jorge e tornou-se “emigrante em Portugal”, com obras “na serra da Estrela, no Estoril, em Chaves, em Cernache do Bonjardim, perto de Coimbra”. “Vinha a casa de 15 em 15 dias”, recorda.
“Sempre fui incutido a estar na sociedade ao serviço do outro. Podia chegar à Suíça e estar muito bem, a trabalhar e a ganhar o meu dinheiro, mas não era completamente eu”, Armindo Vaz, 58 anos, emigrante em Zug com origem em São Martinho de Candoso
O casamento, aos 23 anos, viria a colocar a Suíça no horizonte, porém. Como rejeitou deslocar-se para locais em que “não fosse todos os dias a casa” - não era o seu “conceito de família” -, Armindo Vaz fez as malas e partiu para um destino onde tinha a irmã mais velha e o cunhado; mal se deparou com a cidade e o lago com o mesmo nome, viu um recorte evocativo da terra que deixara. “Vi um escritório da Coelima numa das principais ruas. Logo a seguir desapareceu com a crise no Vale do Ave”, conta.
Os escritórios das multinacionais do petróleo, dos cosméticos, dos fármacos são, aliás, omnipresentes nas ruas da cidade-sede de um cantão onde se paga menos impostos face ao resto da Suíça, informa o emigrante. Convencido de que errou ao não se inscrever logo numa escola de alemão, língua que fala com maior dificuldade face ao francês e ao italiano, Armindo vingou na construção face aos “muitos conhecimentos” com que já partia; essa era, aliás, a norma entre muitos portugueses, nomeadamente de Guimarães.
“Enquanto eles são capazes de fazer um quadrado, nós pomos-lhes mais um bico. Há malta daqui que trabalha nas melhores empresas de cantaria; muitos deles aprenderam em São Torcato”, explica, realçando que, a par de Viseu, Guimarães é o concelho português com maior representação lusa no cantão de Zug – quase 130 mil pessoas -, tendo pelo menos 200 origem na área mais a jusante do Selho, entre Candoso e Serzedelo. “Os primeiros portugueses no cantão foram duas pessoas de Viseu e duas de Guimarães, antes do 25 de Abril. Soube disso na Missão Católica”, atesta.
À medida que o trabalho progredia, também a consciência para “as lacunas a nível social e organizativo”. A primeira falha detetada foi a do ensino do português, o que o levou à articulação entre a associação de pais em que participava, a cargo de encontrar residência para professores, e a embaixada, responsável pela colocação nas escolas. Na missão católica, ajudou a dinamizar catequese, missa, grupos de jovens, coro e leitores.
A articulação dos movimentos com o rancho folclórico e as “festas de integração”, com gastronomia e artesanato portugueses, fez com que “a comunidade se congregasse”. “Se a comunidade portuguesa contribui para que Zug seja melhor, julgo que sim. Estávamos todos com receio que, no pós-pandemia, as coisas não voltassem a ser o que eram, mas recomeçámos com malta nova, jovens. Temos a nossa comunidade muito unidinha.”, sintetiza.

“Para o ano vou, para o ano vou”
Trabalhador de uma “profissão de desgaste rápido”, sujeita a temperaturas ora “altíssimas”, ora negativas, Armindo Vaz já sabe o que fazer quando se reformar, previsivelmente daqui a dois anos. Com os dois filhos em Zug, a esposa está “sempre naquela, dividida”, mas o emigrante quer o regresso. “Penso voltar, porque, depois de 30 e tal anos fora, quero estar um bocado no sossego. Mas não sei se vou estar no sossego. Às tantas, vou chegar cá e fazer qualquer coisa”, afirma.
Essa convicção à moda de um relógio suíço transforma-se em dúvidas quando a geografia oscila entre a França e o Mónaco. Cutileiro até aos 31 anos, Augusto Gomes leva mais de três décadas em Beausoleil, onde os restaurantes e os cafés o fazem “sentir-se em casa”. Ainda assim, e contra a vontade da esposa, pensa responder ao apelo da Longos natal. A hesitação prolonga-se. “O meu pai já diz há quatro ou cinco anos: para o ano vou, para o ano vou. Ele quer vir, mas a minha mãe diz sempre que não. Adia ao máximo porque toda a família está lá”, descreve Jorge, o vereador de Beausoleil, a caminho da imagem da Senhora da Boa Viagem, a quem se pede emigrantes a salvo. O filho, por seu turno, vê os três filhos a crescer, dispõe de estabilidade financeira e vê o regresso definitivo à freguesia de origem como algo remoto, ainda que já tenha comprado uma casa.
Descartado está o regresso de Manuel Martins. Apesar da perda da esposa, natural de Atães, em dezembro, o fafense há quase seis décadas em Montluçon pensa acompanhar o trajeto dos dois filhos e três filhas até ao fim dos seus dias. O reencontro com a terra-mãe pode-se dar, todavia, através de uma das descendentes. Nathalie sempre se habituou ao agosto de Portugal, uma “terra em que até a gente desconhecida é bem recebida”, e não descarta viver um dia em terras lusas: “Parece que em qualquer situação estamos em casa. Em França, as pessoas são boas, mas fecham-se mais. Fiquei dois anos sem cá vir e tive saudades”.