O coração de Guimarães bateu mais forte há 10 anos e ganhou escala
1300 eventos, 25 mil pessoas em palco, 1,5 milhões de pessoas em eventos. Assim foi a CEC 2012. Hoje o cinema afirma-se, por exemplo, mas há ainda “potencial” a explorar na ligação à economia.

* com Pedro C. Esteves
Uma busca pela arrecadação desvenda uma saia comprida de três camadas: rosa garrido à superfície, listas azuis e brancas no meio e, no interior, os padrões familiares do Bordado de Guimarães, a vermelho e branco. Com a blusa florida ao pé, forma o traje que Josefa da Silva Matos envergou no encerramento da Capital Europeia da Cultura (CEC): a torcatense foi uma das 600 pessoas que, a 21 de dezembro de 2012, subiram ao palco do Multiusos para “Então, ficamos…”, o espetáculo de comunidade inspirado em vinhetas do quotidiano vimaranense.
O traje era um dos adereços que compôs a paisagem rural, mas também evocações mais próximas do centro urbano, como a romaria de Nossa Senhora da Luz, em Creixomil. A performance levou dois anos a preparar, mas um dos momentos a que o público assistiu remonta tão só à véspera. Quando ensaiava entre andores, Josefa teve uma ideia: a encenação de uma cena de confesso.
“Ó senhor padre, queria que me confessasse”, recorda, palavra por palavra. “Então sentou-se numa beira e assim foi. Era uma coisa que não tinha de fazer, mas saiu-me da própria cabeça. A doutora Suzana Ralha [responsável pela área de Comunidade na CEC] viu e disse-me que queria aquilo no espetáculo”.
Finda a Capital, ofereceram os trajes a quem os vestiu. Aceitou o seu de pronto até pela formação que tem em Bordado de Guimarães. E tem feito questão de não o ter esquecido no fundo de um baú. “Em algumas edições da Feira Afonsina, fomos assim vestidas, eu e três amigas”, revela ao Jornal de Guimarães a antiga proprietária de uma confeção, hoje com 77 anos.
Aquelas roupas estendem-se assim pelo tempo, à semelhança das memórias deixadas pelo espetáculo, tecidas por noites em claro: “Foi tudo bem organizado, mas muita horinha a gente perdeu. Às vezes, saíamos de madrugada. Para aqueles que trabalhavam nas fábricas era difícil”.

Aquela derradeira celebração de Guimarães parece encapsular o caminho para todo um ano emoldurado em arte, que só ganhou tração no último semestre de 2011, com os corações nas montras e o mantra “Tu fazes parte” a superarem as precedentes desavenças entre Fundação Cidade de Guimarães (FCG) e Câmara, bem como os obstáculos ao financiamento prometido, recorda o diretor executivo da CEC, Carlos Martins.
A maior fatia da receita, 70 milhões de euros, destinou-se à transformação física da cidade, que é “imediata”: o novo Toural e a nova Alameda de São Dâmaso, prontos em 2011, o Laboratório da Paisagem, inaugurado em 2014, a Casa da Memória, em 2016, e a requalificação de Couros, prestes a abarcar o Teatro Jordão e a Garagem Avenida, após a transformação das antigas fábricas de curtumes. A Plataforma das Artes foi o mais elevado de todos os investimentos: quase 15 milhões de euros.
Para a programação cultural, cujo efeito de mudança “demora muitos anos a ser visível”, houve 36,5 milhões - 22,5 para os eventos e 14 para comunicação, marketing e despesas de funcionamento -, indica o estudo referente aos impactos económicos e sociais do grande evento, de setembro de 2013, coordenado pela Universidade do Minho.

“Construir uma narrativa”
“O mais difícil é o dia seguinte. Há um efeito de ressaca durante uns anos, que depois se vai recuperando”, sentencia Carlos Martins, figura que conhece todo o processo envolvente à CEC. Os dados da UMinho confirmam um ano de exceção: 1300 eventos - 75% na cidade e 25% no restante território -, “cerca de 25 mil pessoas em palco”, 1,5 milhões de entradas em eventos e exposições, e um crescimento de 36% nas receitas hoteleiras face a 2011. “O impacto económico total foi de cerca de 100 milhões”, sintetiza o diretor executivo.
Esta erupção de vida e de gente culminou um processo que o responsável integrou desde a fase de candidatura, com a missão de “construir uma narrativa” que levaria à atribuição do título de CEC, a 12 de maio de 2009. Para o especialista em economia, a “grande referência” da proposta de cidade apresentada à Comissão Europeia foi a vereadora municipal para a Cultura, a malograda Francisca Abreu. “Teve o mérito de projetar a ideia de Património Mundial e de perceber depois que isso não chegava”, considera. “Era preciso abrir a cidade a uma cultura mais contemporânea, à criatividade, à inovação. Francisca Abreu viu na Capital Europeia da Cultura a oportunidade de a transformar”.
Além das negociações com o Governo, com o Turismo de Portugal e com a CCDR-Norte para garantir o financiamento do quadro comunitário de 2007-2013, Guimarães tinha de responder a “três grandes questões”: “a visão de futuro sobre a cidade e a sua transformação a partir das dinâmicas culturais”, “o envolvimento dos cidadãos no projeto” e “os traços europeus do projeto, ultrapassando as dimensões local e nacional”, enumera Carlos Martins.
A primeira respeitava à conversão de um tecido económico que soçobrava perante a deslocalização da manufatura para outros continentes e a crise financeira internacional, reconhecendo a criatividade como via a seguir; a adaptação de fábricas de outrora em espaços como o Instituto de Design e o Laboratório da Paisagem enquadra-se nessa estratégia, descreve.
“Francisca Abreu apelou ao facto de este projeto ser o de uma ideia de cidade e de transformação. Dizia que, mais do que a questão técnica, havia o lado emocional e afetivo nas coisas”, Carlos Martins, diretor executivo da CEC 2012
Quanto ao envolvimento dos vimaranenses, Guimarães é ainda hoje “o melhor exemplo da participação ativa dos cidadãos” segundo as análises de caso da Comissão Europeia para as Capitais Europeias da Cultura. Mas essa marca teve o seu quê de twist de última hora; em junho de 2011, o cenário antecipado era o de falhanço.
O protocolo com a Oficina, responsável por muita da programação artística, tardava, a tensão entre António Magalhães, presidente da Câmara, e Cristina Azevedo, presidente da FCG desde a sua constituição em julho de 2009, crescia, e os habitantes não sentiam o que estava por vir. Carlos Martins já abandonara funções: “A principal razão pela qual saí na altura foi a comunicação. Convidaram uma empresa de Lisboa para fazer comunicação, sem qualquer noção do que era a cidade”, diz o cidadão oriundo de Santa Maria da Feira que decidiu, à época, viver em Guimarães.
A 22 de julho, Cristina Azevedo abandona o cargo que viria a ser ocupado seis dias depois pelo seu vice-presidente, João Serra. O regresso de Carlos Martins dá-se pouco depois, por influência do “professor” com quem já trabalhara, mas principalmente pela ação de Francisca Abreu. “Apelou ao facto de este projeto ser o de uma ideia de cidade e de transformação. Dizia que, mais do que a questão técnica, havia o lado emocional e afetivo nas coisas”, recorda.
Floresceu então um lampejo de “última instância” para envolver os vimaranenses: o logótipo em forma de coração e o lema “Tu fazes parte”. “Tiveram um efeito surpreendentemente positivo, mas vieram muito tarde”, considera. Ainda assim, a máquina entrou em velocidade de cruzeiro e a população encheu o renovado Toural a 21 de janeiro, para o evento de abertura, com os La Fura del Baus e a Banda Filarmónica de Pevidém. Mais do que isso, nasciam projetos artísticos à margem do programa formal, como o Centro para os Assuntos de Arte e Arquitetura (CAAA) e o Guimarães Noc Noc.
Noutros recantos da CEC, afirmava-se a internacionalização dos protagonistas ou das criações. A Fundação Orquestra Estúdio, com “metade dos músicos a provirem de outros países europeus”, ou 3X3D, um filme de Edgar Pera, Peter Greenaway e Jean Luc-Godard que se estreou em Cannes, em 2013, materializaram a ambição de “tornar a cidade mais aberta ao mundo”, exemplifica o responsável.
O crescente ecossistema da música e do cinema
A música, com 353 momentos, e o cinema, com 189, perfizeram quase 42% de todos os eventos da CEC. E, passados 10 anos, são das áreas que mais dinamizaram a criação do território, reconhece o vereador municipal para a Cultura, Paulo Lopes Silva. No som, já havia eventos de renome como o Guimarães Jazz, mas 2012 foi a divisória para um futuro com uma Orquestra de Guimarães que promove várias “residências artísticas”, com um Quarteto de Cordas que está no cerne do recém-criado Guimarães Clássico e com várias bandas de rock alternativo com “afirmação nacional e internacional”. Mais do que na performance, este município afirma-se também nos eventos – Mucho Flow, L’Agosto, Banhos Velhos, Ego, Vai-m’à Banda, Suave Fest, Ciclo Terra – ou nas promotoras – Revolve, Elephante Musik ou Capivara Azul.
Mas o “expoente máximo da transformação” é o cinema, afirma o responsável. E essa mudança tem uma cara, diz: a do realizador Rodrigo Areias, que lidera a Bando à Parte, produtora sediada no CAAA. “É a segunda maior nacional. E isso vem da capacidade de produção cá instalada desde a Capital Europeia da Cultura”, diz acerca da produtora de Listen, filme de Ana Rocha de Sousa que venceu quatro prémios no Festival de Cinema de Veneza de 2020.
No teatro e na dança, onde sobressaem eventos como o GUIdance e os Festivais Gil Vicente, o presidente da cooperativa reconhece as “diferentes estratégias seguidas ao longo dos últimos 10 anos”. Mais do que a criação regular por coletivos como o Teatro Oficina, tem-se privilegiado “mecanismos de apoio e facilitação da criação”, como o Gangue de Guimarães, que mapeia atores e encenadores com ligação à cidade.
Paulo Lopes Silva salienta o regresso de artistas a Guimarães nos últimos dois anos, que atribui a mecanismos de apoio à criação como o IMPACTA e as open call, num “momento de fragilidade” do setor, e a projetos de nova leitura do território como o Bairro C.

Um ensino superior com “fontes de inspiração e criação”
Reserva da memória dos curtumes na cidade e epicentro do Bairro C, Couros é outro lugar desde 2012. O município vê no Teatro Jordão e na Garagem Avenida, as futuras casas dos cursos de Artes Visuais e de Teatro da Universidade do Minho, bem como o Conservatório de Guimarães, o fecho do anel de conhecimento iniciado com o Instituto de Design, o centro de Ciência Viva e o Centro Avançado de Formação Pós-Graduada.
O vereador acredita na “consolidação da sustentabilidade de um projeto” que tem ganhado fôlego com passos certeiros aqui e ali – a parceria do curso de Artes Visuais com o Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG) ou a realização do encontro nacional de estudantes de teatro em Guimarães.
“Sentimo-nos um bocadinho mais habitantes da cidade do que os alunos de Azurém. Convivemos mais com a população”, Ana Luísa Silva, presidente do Núcleo de Alunos de Design de Produto da Universidade do Minho
Mas a UMinho chegou a Couros praticamente após a CEC. Fê-lo através da licenciatura em Design de Produto, agora com nove anos. Ana Luísa Silva esboça o seu futuro a partir do Instituto de Design desde 2018 e reconhece a mais-valia da proximidade com o centro histórico e equipamentos culturais como o Centro Cultural Vila Flor (CCVF). “Mesmo que estejamos ligados ao produto e que isso possa parecer menos criativo, é importante bebermos das áreas culturais, para termos fontes de inspiração e de criação”, frisa a presidente do Núcleo de Alunos de Design de Produto da Universidade do Minho (NADPUM), a cumprir o primeiro ano de estudante do primeiro ano do mestrado em Design de Produto e Serviços.
Com residência no centro histórico, a estudante de Bragança frequenta iniciativas como o Shortcutz Guimarães, no Cineclube, e estabelece contacto com o tecido artístico vimaranense, o que até lhe pode abrir portas a nível profissional. E a relação com a cidade é, por norma, mais forte do que a mencionada pelos alunos do campus mais antigo. “Sentimo-nos um bocadinho mais habitantes da cidade do que os alunos de Azurém. Convivemos mais com a população. O outro lado da moeda é ficarmos mais isolados da comunidade académica”, descreve.

Emprego criativo: “Potencial com margem para crescer”
Apesar da licenciatura ter nove anos e estar ainda em constante mutação, com retoques aqui e ali de ano para ano, a brigantina de 21 anos testemunha uma ligação sólida ao tecido empresarial do Norte litoral. A chave, a seu ver, é o estágio curricular do último semestre. “Escolhemos uma empresa e passamos seis meses a desenvolver um projeto nosso em parceria com a empresa”, informa. “No final, defendemo-lo. Há pessoas que têm logo oportunidade de ficar nas empresas, em Guimarães, em Braga, no Porto”.
A adição de conhecimento ao tecido económico foi um dos vértices da transformação preconizada para Guimarães, com dois equipamentos a ocuparem esse imaginário: o Avepark, em Barco, com a incubadora Spinpark, e a Plataforma das Artes com os seus laboratórios criativos. Passada uma década, estão ocupados metade dos 12 espaços na ala leste do antigo mercado. Isso não significa, porém, que as valências sejam um insucesso, afirma Carla Rocha, responsável pela Get Green, um dos 26 projetos selecionados para a incubadora da Plataforma das Artes ao abrigo do Talentos 2012.
“O conceito dos laboratórios é o de permitir a rotatividade”, diz a coproprietária da empresa ligada à mobilidade sustentável, agora instalada na ala norte da Plataforma. “Há empresas que vingam e outras que, infelizmente, não resultam. Não conseguem passar de uma ideia. E os fundos comunitários para alavancar negócios são diminutos e pouco divulgados”.
O vereador municipal para a Cultura partilha desta ideia, realçando que os dados do Observatório das Cidades Culturais e Criativas, que incluía Guimarães entre as 55 melhores da Europa à sua escala na criação de emprego criativo e com o recém-criado programa Set.Up Guimarães.
Embora mais longe, Carlos Martins tem acompanhado esse processo e continua a ver “potencial” em Guimarães para a implementação de “empresas tecnológicas e criativas”; o seu peso tem aumentado, nota, mas continua “residual na economia”. “É um potencial com margem para crescer. Não está condenado, mas não está resolvido”, sustenta.

Outros caminhos para voar
Em 2012, a artista, curadora e professora Gabriela Vaz-Pinheiro dava seguimento a um projeto de conversão industrial em curso. Em Polvoreira, a cultura entrava num espaço habituado ao ritmo fabril. O Laboratório de Curadoria queria dar “um monumento à cidade”.
A Fábrica ASA foi então o segundo espaço que mais eventos acolheu: 190, atrás do CCVF (246). Dez anos volvidos, é casa para 90 empresas. Multidisciplinar, “atingiu o ponto de rentabilidade” antes do prazo de sete anos que fora traçado, mas “ainda tem muito para crescer”, assume quem gere o espaço.
Propriedade dos administradores da Lameirinho desde 1996, dá guarida a atividades desportivas, gabinetes, ginásios ou armazéns. Localizada à margem de uma estrada nacional, com o comboio perto, é procurada diariamente, até por gente oriunda do Porto, assegura ao Jornal de Guimarães um responsável pela gestão da Fábrica ASA.
De 2012, sobram ainda vestígios do fervilhar cultural que ali se sentiu: há espaços utilizados para residências artísticas ou para ensaios. Continua a ser um “espaço para cultura” – a sua black box é uma extensão natutal do Centro de Criação de Candoso e acolhe um espetáculo do festival GUIdance todos os anos. Em redor, um ambiente de adaptabilidade constante: “Vamos adaptando o espaço que temos às necessidades de cada um”.
O timbre polifónico das associações
Na CEC, o programa Tempos Cruzados, dedicado às associações, só se cumpriu em 2013, após atrasos no financiamento. Depois das queixas de se verem excluídas do evento na era Cristina Azevedo, as instituições vimaranenses mais consolidadas no tecido associativo – Cineclube, Convívio, Círculo de Arte e Recreio, que ainda hoje permanecem ativas – puderam colocar em marcha o seu programa.