O “génio e o destino” de Florbela passaram por Gonça e estão agora em livro
A necessidade “de fuga e de evasão” motivou essa estadia, descrita em "Viajar com... Florbela Espanca", um "roteiro cultural" sobre a poetisa, apresentado na freguesia vimaranense, a 11 de setembro.

Ao fim de quase 100 anos, Florbela Espanca regressou a Gonça; não com o seu “corpo prometido à morte”, como escreveu em Volúpia, mas com a memória vertida nas palavras de José Carlos Seabra Pereira, autor de mais um livro da coleção Viajar com… os caminhos da literatura, promovida pela Direção Regional da Cultura do Norte (DRCN) em parceria com a editora Opera Omnia.
Mais de 50 pessoas ocuparam os degraus contíguos à praça da Cultura na tarde soalheira de 11 de setembro para verem (e ouvirem) o autor de várias obras sobre literatura portuguesa discorrer sobre uma figura que se destacou entre o “grande surto de literatura de autoria feminina” ocorrido em Portugal no final da Primeira Guerra Mundial.
Mesmo sem andar à “tona dos movimentos literários”, a alentejana que foi do Norte enquanto adulta revelou “dotes poéticos naturais” e uma “grande consciência artística” numa criação marcada por um “eu ao mesmo tempo convicto e intranquilo”, que entreabre a porta para a sua “vida acidentada”, finda em 1930, aos 36 anos.
“A matéria principal deste livro é uma imagem global da vida e da obra dela. No fundo do génio e do destino dela. Esse génio e esse destino cumprem-se no Norte e também em Gonça”, reitera o antigo professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica, à margem da sessão promovida pela Rimas e Tabuadas.
Foi precisamente a vida de “projetos e desenganos”, de “esperanças, desilusões e até depressões”, com os sobressaltos de “dois casamentos civis e um terceiro casamento religioso”, que despertou na poetisa os sentimentos “de fuga e de evasão”, impulsos para a estadia em Gonça, decorria o ano de 1923.
Fruto do segundo casamento, com Augusto Guimarães, um militar no Porto com família em Guimarães, Florbela encontrou uma terra onde se “sentia bem” e as “pessoas a tratavam bem”, frisa Seabra Pereira. Uma das suas cartas também não deixava dúvidas quanto à “beleza” e à “serenidade” que encontrava naquele recanto verde: “Acho-me bem a interessar-me por estas histórias d’aldeia, enfim, a ler ao natural um romance de Júlio Diniz”.

Um “roteiro cultural” feito de biografia e geografia
É na relação da “poética do corpo” de Florbela, que é simultaneamente “enamoramento” e “desejo de prazer”, com a “geografia física e humana do Norte” que se encontra a razão de ser do livro de Seabra Pereira. Tal como os 11 livros anteriores da série, Viajar com Florbela Espanca é uma proposta de “roteiro cultural” a partir da “obra de um autor, da sua biografia e dos locais por onde passaram”, esclarece ao Jornal de Guimarães o responsável pela Opera Omnia, José Manuel Costa.
Os benefícios da coleção para as economias das terras inscritas na literatura portuguesa já são visíveis, acrescenta. “Em Santa Cruz do Douro, existem os “Caminhos de Jacinto”, que é o Jacinto de A Cidade e as Serras, do Eça de Queirós. De vez em quando, recebem 50, 60 ou 70 pessoas e isso é muito importante”, detalha.
A coleção também é uma forma de mostrar às populações que “há motivo para terem orgulho nas suas terras”, eternizadas pelas penas de grandes nomes da literatura nacional, acrescenta João Silva, da DRCN. No caso de Florbela Espanca, o responsável lembra que Gonça foi a inspiração para Rústica, poema que começa assim: “Ser a moça mais linda do povoado / Pisar, sempre contente o mesmo trilho / Ver descer sobre o ninho aconchegado / A bênção do Senhor em cada filho”. Parece uma “visão idílica do mundo rural, não muito realista”, admite Seabra Pereira. Mas a serenidade é aparente, já que o eu de Florbela se revela no fim: “Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! / Dou por elas meu trono de Princesa / E todos os meus Reinos de Ansiedade”.
“Gonça pode estar grata a Florbela pela incursão na obra dela, mas Florbela também ficou certamente grata a Gonça”, constata o especialista em literatura portuguesa.
